Pandemia, quase 2 anos de bizarrias várias. Começando pelo Desporto

Vamos directos ao assunto: a pandemia (ou o que foram fazendo com ela) deu origem a inúmeras situações caricatas. Mil vezes me veio à cabeça o refrão daquela música do Gabriel, o Pensador, "É pra rir ou pra chorar?". O que segue é, a propósito do «caso Djokovic» no Open da Austrália, uma selecção de alguns momentos desportivos simplesmente bizarros.

1. Liverpool celebra a conquista da Premier League

Começo por esta porque, em rigor, «bizarria» não se lhe aplica. Será mais um caso «estranho». E mesmo isso será certamente discutível. Muitos me dirão que "Hoje é tudo assim". Essa objecção afigura-se-me, de antemão, legítima e, nesse sentido, ao meu «estranho» inicial somo um «sintomático».

O caso não é que, como vai acima, um clube de futebol celebre uma conquista de uma liga; é que o fez para um estádio vazio como se estivesse com adeptos.

Jordan Henderson, excelente capitão desta excelente equipa, ergueu o troféu mais desejado pelos clubes ingleses e exibiu-o - em frente - com orgulho, tendo atrás dele, numa moldura perfeita, o restante plantel, todos virados na mesma direcção, olhando um mesmo interlocutor, por sobre as câmaras, para lá das câmaras.

foto tirada daqui

Simplesmente, não tinham ninguém à sua frente. Apenas um batalhão de câmaras estrategicamente colocadas. As bancadas do mítico Anfield Road estavam vazias.

foto tirada daqui

Foi uma encenação, uma estranha e sintomática encenação. E é aí que regressa em força aquela frase: "Hoje é tudo assim".


2. A Cerimónia de Abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio

Talvez que o preâmbulo e o ajuste vocabular do ponto anterior se aplique, sem grande sacrifício da verdade, a este caso. Ainda assim, julgo que há uma diferença de sentido suficientemente significativa para que não nos quedemos por aí. Não penso que estejamos perante uma encenação mais ou menos aceitável, por mais estranha e sintomática que seja. A Cerimónia de Abertura de Tóquio 2020, e aliás a globalidade dos Jogos, foi outra coisa qualquer - mais sinistra, apetece dizer.

fotos tiradas daqui

Tive oportunidade de assistir ao vivo a grande parte da transmissão televisiva e o mínimo que se pode dizer é que foi esquisito. O espectáculo de centenas de atletas de elite, de rosto uniformizado pela máscara, a acenar para um estádio sepulcralmente vazio foi-se tornando cada vez mais insuportável. E que à sua volta prosseguisse, insensível, maquinal, o imenso aparato de fogo-de-artifício e de batalhões coreografados de artistas e figurantes minuciosamente preparado para as câmaras - apenas aumentou o sentimento de absurdo.




A celebração dos grandes valores olímpicos, que esta cerimónia deveria representar e sintetizar, viu-se draconianamente submetida a uma autêntica lei marcial - em nome do combate à pandemia, naturalmente.

Enfim, o resultado foi bizarro. Tornando à pergunta do refrão do Gabriel, aqui a resposta apresentou-se-me cristalina.
E não, não era rir.


3. Jogo entre Brasil e Argentina é interrompido

Este é bizarro, ponto final.
O jogo de qualificação para o Mundial de Futebol (a disputar no final deste ano no Qatar) entre o Brasil e a Argentina - que é tão-só o maior e mais vibrante jogo daquela confederação e um dos mais aguardados e míticos duelos do Desporto-Rei - foi extemporaneamente interrompido ao quinto minuto por agentes das autoridades sanitárias brasileiras.

foto tirada daqui

O problema? Quatro jogadores da selecção argentina (três dos quais titulares), porque provinham das ilhas britânicas (onde representam clubes ingleses), deviam ter sido sujeitos a regras específicas de isolamento à entrada em solo brasileiro. Como anunciava a CNN Brasil na ocasião, "argentinos descumpriram medida sanitária".

Mas como é que isto aconteceu? A convocatória para o jogo foi feito vários dias antes da data marcada, toda (mesmo toda) a gente podia com a maior das facilidades saber que havia na convocatória albiceleste jogadores que representavam clubes ingleses, toda (mesmo toda) a gente podia com todo o tempo verificar que o Reino Unido estava na "lista negra" brasileira (coisas da pandemia), toda (mesmo toda) a gente podia rapidamente verificar que a Argentina tinha outros compromissos noutros países e que, portanto, seria impossível levar aqueles jogadores para solo brasileiro a tempo de cumprir os 14 dias de isolamento profilático pré-determinados... e a lista continua.

Como é que se chegou ao início do jogo (note-se que as equipas têm de comparecer antecipadamente no estádio designado, publicar com uma hora de antecedência o alinhamento de jogadores que participarão na partida, cumprir todas as rotinas de preparação e aquecimento - e não estamos a falar de uma corridinha de 10 minutos à volta do campo, etc., etc.) e só então, já depois do apito inicial (!), é que dois tipos de calças de ganga (oficiais da ANVISA, Agência Nacional de Vigilância Sanitária) irrompem pelo campo adentro para, atabalhoada mas heroicamente, fazer cumprir uma ordem que, justa ou injusta, certamente podia (e devia) ter sido atempadamente acautelada.

foto tirada já não sei donde

A análise forense ao imbróglio revelou, apesar das muitas versões contraditórias, que tiveram lugar algumas negociações prévias, alguns avanços e recuos, mas principalmente muita coisa muito mal explicada - e, como aliás estava mais que visto, nunca nada ficou bem esclarecido.

Na prática, além do triste (porém hilariante) espectáculo e da suspensão do jogo, deu-se que a equipa argentina foi recambiada sem contemplações para fora do território brasileiro (a chamada deportaçãozinha), tendo recebido ordem de ir directamente do estádio para o aeroporto.

A julgar pelos comentários ao vídeo da CNN Brasil que já fui citando, fez-se justiça.
Ou qualquer coisa assim.


Como sintetizou na ocasião um repórter da BBC:


4. Belenenses apresenta-se com nove jogadores para defrontar o Benfica

Claro que não podia faltar o subsídio luso numa lista de eventos bizarros. Foi a 27 de Novembro do ano passado. Pessoalmente, só soube do facto consumado. O meu desinteresse pelas lides do futebol nacional já vem de há muito, de molde que - até porque pouco ou nada investiguei do caso nos dias seguintes - não sei como raio é que isto se deu.

E o que se deu foi isto: o Belenenses (ou melhor, a B SAD...) recebeu o Benfica, no Estádio Nacional, em jogo a contar para o campeonato nacional. Os azuis outrora "do Restelo", desgraçadamente atingidos por um valente surto de COVID-19, foram a jogo com apenas nove jogadores (sem suplentes, claro está). Como se isso não bastasse, dentre esses nove, dois eram guarda-redes. Um deles jogou "à frente", algures. E, para marcar o tom, no primeiro minuto de jogo, de Sousa Santos (?) marcou na própria baliza. Quando o árbitro apitou para o intervalo, o placard mostrava um copioso 0-7.

fotos tiradas daqui

O Belenenses só fez regressar sete jogadores do balneário e foi logo no reatar da segunda-parte que um dos resistentes caiu por terra, lesionado (na alma?), forçando o juiz do encontro a dar a coisa por terminada.

Na team sheet publicada pela BBC, figura na baliza o nome de Sofrimento Ramalho.
Confere.

Figura ainda uma dupla de avançados que promete rivalizar com outros duos lendários, como Andy Cole & Dwight Yorke, Thierry Henry & Dennis Bergkamp ou Bebeto & Romário.


A culpa, tanto quanto sei, segue solteira, e assim promete falecer. Darwin Nuñez, avançado "encarnado", marcou um hat-trick e é, (também) à conta disso, o melhor marcador do campeonato. Que consequências futuras terão aqueles sete golos sem resposta nos destinos das duas equipas (e da liga como um todo) ainda estamos por saber.

A ver vamos.


5. Jogo da liga italiana é adiado

Um jogo de futebol adiado à conta da COVID-19. No big deal. Só em Inglaterra, esta época, já foram uns dez. Mas o desafio que oporia Bologna e Inter de Milão teve um lado bizarro. É que a Serie A, a liga italiana de futebol, não aceitou adiar o jogo antecipadamente. Resultado? A turma do Norte de Itália teve de cumprir todos os protocolos de comparência - apesar de o país inteiro saber que a equipa da casa estava toda... em casa.

foto tirada daqui

O Bologna anunciara, nas vésperas do jogo, que quatro jogadores da equipa principal tinham tido testes positivos ao novo coronavírus. Pediram então o adiamento do jogo com o Inter (e o que se lhe seguiria) e, no cumprimento de ordem da autoridade sanitária local, iniciaram no dia anterior à partida um isolamento profilático de todo o plantel. Um isolamento de cinco dias.

Por qualquer absurdo, a equipa visitante, sob pena de, dalguma maneira, sair prejudicada, não pôde deixar de viajar e de marcar presença num estádio que, de resto, estava fechado ao público. Mas não só. O Inter cumpriu o aquecimento completo e teve inclusivamente de aguardar todo o tempo correspondente à primeira parte do jogo para ter a confirmação (!) do adiamento do jogo.

Os próprios delegados ao jogo não descuraram dos detalhes - e até testaram a chamada tecnologia da linha de golo. Não fosse o Diabo tecê-las...

foto tirada daqui


6. Djokovic e o visa australiano

Era conhecida de há meses a oposição do n.º 1 do ranking ATP à ideia de impedir jogadores não-vacinados de competir nas provas do circuito, sequer que a sua situação vacinal fosse escrutinada publicamente. De resto, só agora, em tribunal, se soube que o sérvio não está ainda vacinado contra a COVID-19.

Sabendo-se que a organização do Open da Austrália tornara essa ideia realidade, e à medida que se foi aproximando a data do torneio, a tensão foi acumulando. Djokovic foi admitindo a hipótese de não participar na prova que, em caso de vitória, o colocaria (colocará?) nos pináculos da História da modalidade. Até que, uns dias antes das datas aprazadas, anunciou que tinha obtido, junto de dois órgãos clínicos independentes (supostamente reconhecidos pela organização da prova, a qual estaria em linha com as normas governamentais) uma isenção relativamente à obrigatoriedade da vacinação e que rumava ao país-continente para jogar.

Aí é que a coisa deu para o torto.

É que, nos dias que correm, a entrada de um estrangeiro não-vacinado contra o novo coronavírus em solo australiano é, mais do que sensível, matéria inflamável, mais ainda quando se trata de uma figura pública de arcaboiço planetário. Isso eleva uma questão burocrática ao plano do símbolo.

Além disso, o anúncio teve, por si só, uma recepção muito negativa da parte de todos quantos têm vivido, de há meses a esta parte, debaixo de um vasto e duríssimo conjunto de restrições. A primeira impressão é a do privilégio: esta isenção decorre certamente do estatuto especial deste indivíduo e é, por isso, injusta.

imagem tirada daqui

Na prática, Djokovic ficou retido no aeroporto de Melbourne, onde aterrou às 23h30, hora local, durante horas, antes de ser colocado num hotel em isolamento (que vários media de língua inglesa designaram de "an immigration hotel" e que descrevem como local para onde são enviadas pessoas na mesma situação), enquanto intentava apelar contra a decisão das autoridades de lhe cancelarem o visa.


fotos tiradas daqui

O apelo foi levado a tribunal ontem e o atleta sérvio acabou por ganhar a contenda judicial (a qual, note-se, ainda pode conhecer novo volte-face). O ponto principal terá sido o de não lhe ter sido concedido o tempo regulamentar para apresentar a sua defesa à decisão inicial.

No meio-tempo, o governo australiano foi dizendo uma série de coisas obscuras e complicadas de esclarecer, envolvendo, o mais das vezes, os opacos conceitos e actos de «detenção» e «deportação». Ao que chegámos.

A sequência e a natureza dos eventos degenerou numa polarização perigosa que tem tingido de negro muitos outros acontecimentos desde Março de 2020. Os lados em disputa entrincheiraram-se em discursos que, de um momento para o outro, fizeram de um tipo de 30 e poucos anos que calha ser um fantástico jogador de ténis um mártir, um potencial perigo para a saúde pública, um símbolo libertário, um negacionista, um mau exemplo para os jovens, um herói nacional - tudo ao mesmo tempo.

O clima no exterior do hotel onde o tenista terá ficado retido e do tribunal onde decorreu a sua audiência dão uma imagem do caso.

fotos tiradas daqui

A bizarria deste caso é a mesmíssima bizarria que contaminou já todo o discurso político e mediático e, numa palavra, toda a «realidade» dalguma maneira ligada à crise pandémica. A feição totalitarista das decisões de inúmeras autoridades sanitárias e governamentais um pouco por todo o Mundo, de par com uma histeria colectiva sem precedentes (impulsionada por um circo mediático que hiperbolizou uma questão que, sendo séria, nunca deveria ter conhecido desenvolvimentos deste tipo) e outros factores simultaneamente estruturais e circunstanciais (como a pressão de certos interesses económicos ou a tendência para manejar agendas políticas internas a partir de um «inimigo» comum e externo), trouxe-nos aqui.

Afinal de contas, a isenção de Djokovic provinha do facto de ter estado infectado recentemente. Isso desaconselha a vacinação (assim ele a quisesse fazer) nos próximos meses, ao mesmo tempo que reduz decisivamente o risco de o tenista sérvio vir a ser um foco de infecção - e, portanto, um perigo para a saúde pública na Austrália.

Veja-se bem: um perigo para a saúde pública na Austrália. É este, pretensamente, o pano de fundo de toda esta bizarria.

Haja paciência.

Mensagens populares deste blogue

Algo de errado se passa.

Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem

Os números COVID-19: ou latos em excesso, ou inconsistentes, ou pouco consolidados