Motor a 4 tempos

1Na última edição do jornal Expresso [10 de Maio], Miguel Sousa Tavares, na sua habitual página, a quinta, desfia um longo rosário de penosas perguntas retóricas acerca do porquê de milhentas decisões governamentais tomadas nos últimos tempos – e, pese embora ter dedicado uns bons dois terços do seu tempo de antena a fazê-lo, não o fez senão numa lógica exemplária, tendo deixado, naturalmente, milhentas outras por levantar. Os porquês do cronista são porquês de contribuinte votante: porquês de quem vê o dinheiro que paga em impostos e contribuições esbanjados em obras civis de utilidade e emergência duvidosas; porquês de quem vê o voto que de quando em quando deposita na urna desconsiderado através de instrumentos legais que atentam contra o património português, seja ele a língua, a paisagem ou outro; de quem observa no seu dia-a-dia os interesses ocultos e a corrupção implícita nesses movimentos e negócios; de quem vê outras áreas com carências enormes fatalmente arredadas das prioridades governamentais, das «agendas políticas».
Aquilo a que o douto vate se reporta, e que ganha especial relevo considerando a influente e volumosa personalidade em questão, não é mais do que a constatação simultaneamente simples e complexa de que o sistema democrático, apesar de tudo quanto nos tentem impingir e inculcar desde tenras idades (e ainda com sadia regularidade enquanto adultos votantes e consumidores), não tem qualquer tipo de engrenagem real de consequências práticas de poder e vontade populares ou, por outro lado, de punição política, bem como de responsabilização partidária ou individual, além de que, como disse João Bernardo para rejeitar justamente as noções de «soberania popular» e «representatividade dos eleitos» associadas propagandisticamente ao regime democrático:
“O poder, ou se tem, ou não se tem; e delegá-lo é perdê-lo, deixar de o ter. Nas democracias, como o capitalismo as conhece, o sufrágio não é mais do que um ritual em que a população, mal lhe afirmam que é depositária do poder soberano, vai publicamente renunciar a ele. E por qualquer magia de que só os constitucionalistas possuem o segredo, esse poder, como um espírito desencarnado, voaria para os eleitos. Deste modo o poder que a camada dirigente já antes detinha é apresentado como se procedesse de uma população que jamais o deteve”.
Questiona ainda Miguel Sousa Tavares, em anáfora, “Fomos nós que pedimos? fomos nós que quisemos? fomos nós que decidimos?”, acerca de um tudo: do acordo ortográfico, das auto-estradas, pontes, aeroportos e TGV, dos PIN, das privatizações, da ASAE, das restrições contra os fumadores e automobilistas, da PAC, dos equipamentos da Força Aérea, dos estádios do Euro-2004, da regionalização; acerca de, enfim, alguns tantos de entre todos os “desígnios nacionais”, “projectos estruturais” e “surtos de desenvolvimento” de que o nosso país tem sido tubo de ensaio e montra de exposição. A resposta (óbvia) é parte da pergunta, e está imbuída de um misto de revolta e resignação, aliás com aparente predominância desta última (porventura pelo carácter fugaz daquela), tanto que, findo o deprimente desfiar, o escritor, vencido e desmoralizado, descrente como só os anteriormente crédulos conseguem ser, declara-se já pessoa de poucas exigências, homem que se contenta com pouco ou mesmo nada, com a conformada noção de que não tem poder algum para alterar seja o que for, restando-lhe tão-só soprar os seus desconsolados ais aos quatro ventos e rezar aos santinhos para que a situação não piore ainda mais. Isto é (ainda que com uma pincelada de ironia, que, de resto, nunca deixa secar ao longo de todo o texto), mostra-se a encarnação plena do cidadão ideal de uma democracia capitalista: “eu hoje já só suspiro por um governo que me prometa ocupar-se do essencial e prescindir do grandioso”.

2Escreveu Weber, na sua Die Protestantische Ethik (título aqui posto conforme o original para embelezar o presente escrito, para lhe conferir uns ares de intelectualidade), com um rigor, objectividade e actualidade que dispensam qualquer achega:
“E muito menos se deve pensar que, para o capitalismo actual, seja uma condição de existência a apropriação subjectiva desta máxima ética [capistalista frankliniana] pelos seus únicos portadores, os empresários ou os trabalhadores das modernas empresas capitalistas. A ordem económica capitalista dos nossos dias é um universo de grandes proporções, que os indivíduos encontram ao nascer, e que constitui para cada um deles, pelo menos enquanto indivíduos, um contexto que não se pode modificar e onde se terá de viver. Este cosmos impõe ao indivíduo, na medida em que se encontra inserido nas relações de mercado, as normas da sua acção económica. O fabricante que desrespeite reiteradamente estas normas é economicamente eliminado, tão infalivelmente como o trabalhador que a elas não possa adaptar-se ou que não o queira fazer é posto na rua, passando à situação de desempregado”.

3Estes dois quadrantes, um político, a Democracia, outro económico, o Capitalismo, encarreiram sobremaneira a nossa vida, o nosso pensar e o nosso agir. E não só o fazem, propositadamente ou por triste sorte, de modo perverso e descarado, como se muniram de um aparelho publicitário tentacular (indicador de um propósito a priori ou, pelo menos, de um aproveitamento a posteriori), o qual se auto-qualifica e compara com base em preconceitos e mitos e se auto-legitima fundado em omissões e mentiras históricas; e que nos ofusca recorrendo aos holofotes da ditosa «Evolução Tecnológica» e da estrondosa «Era da Informação».
Nas universidades e escolas, ao invés de se debater o sentido desta realidade, a maneira de a mudar para melhor, de intervir e progredir – desincentiva-se essa discussão, sub-repticiamente desvalorizando-a, e, através da interpretação apologética da história e da economia, através do elogio implícito e explícito das novas tecnologias (filantropo regalo desta civilização dita moderna!), através da importação acrítica dos «métodos pedagógicos» dos países bastiões desta ideologia (e posterior engenharia estatística de exposição dos «resultados») – sugere-se, elogia-se e promove-se (senão uma paixão burra e sabuja por estes sistemas) uma postura de subserviência e aceitação abjecta deles.

4Merda.

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