Das gentes, ah, engripadas

A dinâmica que caracteriza o tipo de alarmíces como esta que se pôs girando em torno de uma gripe que, depois de Suína e Mexicana, se achou por bem apodar, laconicamente, de A – evoluiu, tudo indica, desde os idos do Terrorismo Internacional, do Antrax ou, até, da mais recente Gripe Aviária. Parece-me aliás relativamente claro que, não obstante o curto espaço temporal que medeia um e outro «surtos», entre a gripe pandémica das aves e a gripe pandémica dos porcos muito mais há a registar de diferente do que a animal adjectivação ou o número que segue o H da molécula da respectiva estirpe (correct me if i´m wrong). E refiro-me, sobretudo (mas não só), ao impacte mediático e ao comportamento popular relativamente às ditas gripes (às ditas alarmíces). De resto, haverá um outro alcance que importe analisar?
Realçando o carácter impressionista do que ora escrevo, e não relaxando na análise da importância da edição reiterada de novas manias, camadas sobre camadas de novos medos, da, chamemos-lhe assim, estratigrafia dos fenómenos mediáticos da Paranóia – quer-me parecer que a Gripe A inaugura um novo estágio de histerismo colectivo induzido, isto é, justamente o não-histerismo, ou melhor será dizer o pós-histerismo. Refiro-me, com dispensável verborreia, a uma apatia cúmplice, a um estupor de cansaço que (repito) impressionisticamente vejo ao meu redor.
Ou será que isto que digo observar nas gentes é visível, isso sim, nos meios de comunicação, sobretudo na televisão? Claro que, assim sendo, em vez de falar em apatias cúmplices ou estupores de cansaço, talvez mais nexo faria falar de co-autorias forçadas ou de advogados do diabo (enfim, bem feitas as contas, entrar em classificações várias, mesmo tratando-se de um entretém porreiro, pouco ou nada ajuda à inteligência da conversa). Em que ficamos, então?
Nos entrementes, e talvez até desmentindo os prismas de análise que vou alvitrando, já o pivô me dá a saber que os “especialistas” estão a prever um “novo surto, provavelmente mais mortífero”, lá para meados do Outono ou quiçá Inverno adentro. Fico sem saber se em novos blocos informativos me saberão avançar dados mais detalhados, como dia e hora do tal regresso do H1N1, stronger than ever style. Este género de nova muito bem faz à manutenção de um não-sei-quê de aparvalhamento no seio da grei.
Antes destas, as novas que nos traziam chegavam na forma de directo televisivo, micro em riste enfiado pelos queixos da ministra acima, “Senhora ministra, já existe algum caso confirmado de Gripe A em Portugal?”, “Não existe qualquer caso confirmado”, e isto ou idêntico repetido logo de seguida por outros jornalistas e noticiário após noticiário, ao longo de uns bons dias, sempre a mesma pergunta, a mesma resposta sempre, e a insistência da pergunta num crescendo de impaciência, “Tem a certeza, senhora ministra?”, “Não existe qualquer caso confirmado”, e à impaciência juntava-se uma tremenda frustração, “O quê? Nem um, ó senhora ministra?”, “Não existe qualquer caso confirmado”, e era como se a ministra fosse a mãe desmancha-prazeres que proíbe o filho de ir àquela festa a que toda a gente vai, pouco faltou para que os jornalistas juntassem à questão a reclamação, “Então, já existe algum caso em Portugal, senhora ministra?, olhe que até já em Espanha há, e na Rússia, aliás, dizem que até já nos Japões há, não nos diga que até nisso é Portugal atrasado?”, “Não existe qualquer caso confirmado”, e do lado de cá do ecrã um suspiro tímido, um estremecer de reacção a ameaçar a inexpressão reinante, o comando remoto ali à mão e a mão só remotamente comandada pelo cérebro que a encima, “Senhora ministra, e hoje, alguma coisa?”, “Por acaso, temos informação de um caso no S. João do Porto”, os jornalistas apanhados desprevenidos entreolhando-se, e logo atropelando-se a pedir permissão de pergunta, uma excitação infantil na sala, mas eleva-se uma vez mais a voz da ministra, “Mas a paciente não está em risco, já tomou um paracetamol e uma gemada forte, amanhã estará como nova”.
No caminho para o autocarro, a voz grave do rádio diz-me que a gripe sazonal, aquela normalzinha, que não interessa nem ao menino Jesus, afecta 500 milhões de pessoas e mata 5 milhões. A voz não me disse o período temporal em que estes números se encaixam. Pouco me importa, de resto. A evidência estatística do absurdo desta gripalhada socio-mediática é, do mal, o menos.
Por tanto falar destas gripes, cada vez mais me convenço que evidencio alguns dos sintomas. Melhor seria medicar-me.

Mensagens populares deste blogue

Algo de errado se passa.

Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem

Os números COVID-19: ou latos em excesso, ou inconsistentes, ou pouco consolidados