Gareth Bale

Só uma parte do valor de transacção de um dado capital traduz o seu real valor no momento em que essa mesma transacção ocorre. Dos 100 milhões de euros que, aparentemente, o maior clube de futebol da capital espanhola está disposto a destinar para garantir os préstimos de Gareth Bale, só uma parte está vinculada ao seu verdadeiro valor. Uma grande fatia desses disparatados 100 milhões fica a dever-se, entre outras variantes, a pura especulação económica e a um certo vício de espectacularidade mediática que de há uns anos a esta parte tomou os gabinetes da direcção daquele emblema. Prosaicamente, Bale não justifica tamanho investimento. Neste ponto, é-me até quase inexplicável como raio é que se chegou a este número ridículo de 100 000 000.
Desde logo, pergunto-me o que motivará um jogador cujo trajecto num determinado clube seja tão concretamente positivo a desejar uma transferência. O que é que o move? Dir-me-ão, não sem uma certa sobranceria perante tão ingénua dúvida, que é o dinheiro. Mas Bale joga no Tottenham, um clube rico de um dos mais abastados campeonatos. Não se trata de melhorar as suas condições de vida, de garantir o futuro ou de proporcionar aos seus maiores confortos e segurança, uma vez que, à escala em que o mediático jogador gravita, o dinheiro será pouco mais que uma abstracção. Salário, naqueles píncaros, é certamente uma palavra sem grande tradução prática e quotidiana. Basta pensar nos avultados rendimentos que estes atletas obtêm de outras fontes, ou no acesso gratuito que, pelo seu estatuto e condição, têm a todos os luxos e prazeres que a sociedade soube criar. E por isso pergunto: pode alguém que viva já uma tal situação financeira e material desejar uma mudança por dinheiro? Provavelmente, sim. A inveja é uma paixão que move montanhas e não conhece limites.
Mas pergunto-me ainda o que fará Bale querer abandonar uma cidade que vive tão intensamente o futebol, abandonar um clube no qual poderia construir uma identidade, o qual poderia impulsionar a um novo patamar, no qual poderia marcar uma era, o qual poderia redefinir em função da sua participação. Numa palavra, um clube no qual poderia fazer história (dir-me-ão que fará, caso se concretize a venda; mas essa, para mim, vale pouco mais que nada). Mais: pergunto-me o que o fará querer sair daquele que é simplesmente o melhor de todos os campeonatos de futebol, onde o Jogo encontra a sua expressão máxima, aquele que é, boamente, o último reduto do Futebol. Irá antes atolar-se em Espanha, a mais sobrevalorizada liga do mundo, bicéfala e corrupta, muito receptiva a polémicas reles de arbitragem e a intrigas de balneário, servil para com os mais ricos e poderosos, publicada por um jornalismo de distrital e falha de lealdade dentro e fora dos relvados. Irá atascar-se no Real Madrid, paradigma actual do que não deve ser um clube de futebol.
Sem querer aparentar moralismos que na verdade não advogo, importa-me sobretudo a dimensão moral que um atleta, seja de que modalidade for, corporiza. Não me refiro ao dinheiro envolvido, muito menos a estilos de vida que os atletas possam assumir e que possam, empregando a fórmula consagrada, chocar e indignar uma sociedade em crise económica e financeira. Refiro-me, isso sim, à entrega à modalidade, quantitativa e qualitativamente; a como um praticante profissional pode nunca deixar de ser um amador no sentido mais belo da palavra; à - repito - identidade que, no caso vertente, um jogador pode construir num clube e numa cidade. O campeonato inglês é pródigo em casos desses, mas também em Itália são muitos e bons os exemplos de jogadores que, como soe dizer-se, vestem a camisola. Não sou da opinião que esta é uma visão romântica, ou apenas ingénua, de uma actividade tão desgraçadamente marcada pelos indizíveis dinheiros que gera e movimenta e em que os patrocínios, os interesses especulativos e os mediatismos de toda a sorte ocupam lugar de tão grande destaque. É o caso que só assim concebo a paixão do Jogo. Creio profundamente que é essa dimensão moral que distingue os maiores (também aqui não falo somente de futebol). Muito gostaria que um jogador com as qualidades físicas e técnicas de Bale não desertasse da Premier League. Mas ele tomou a sua escolha e, ao fim e ao cabo, o Jogo agradece. Há qualquer coisa de saneamento público de cada vez que um destes craques sai.

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