Da greve de motoristas: sinais duns tempos, prenúncios de outros?


Daqui a menos de uma hora terá início uma greve de motoristas de pesados de mercadorias. Desde há semanas a esta parte que este 12 de Agosto tem concentrado doses cavalares de expectativa. Enquanto fenómeno mediático, esta greve é algo de absolutamente inédito. Há vários dias que este assunto está, na gíria jornalística, no “topo da agenda”. E não é só o destaque dado pela quase totalidade dos meios de comunicação (em especial nas televisões, meio por excelência para este tipo de espectacularizações primárias), é o envolvimento profundo e diário das mais altas figuras do Estado, dos ministros das tutelas ao próprio António Costa, passando pelo inefável Marcelo. Gostava de pegar justamente por aqui: porque é que este protesto tem tido este tratamento? Porque é que esta luta corporativa tem merecido tamanha valorização? Um conjunto significativo de factores parece concorrer, em adição e complementaridade, para esta realidade. Desde logo, o seu timing: estamos simultaneamente na silly season e em período pré-eleitoral. Depois, o simples facto de ser precedida por uma greve anterior que, na ocasião, degenerou numa histeria colectiva perfeitamente patética, ainda muito viva na memória colectiva. Os sinais deixados nessa greve apontam, de resto, para um terceiro factor, de ordem eminentemente cultural: o culto nacional do Carro. (Este culto justificaria uma reflexão autónoma. Fica a ideia.) E isto é tanto mais verdade quanto as “matérias perigosas” vão muito além do combustível automóvel – mas só esse tem um relevo quotidiano óbvio, só esse é real e concreto para a generalidade da opinião pública. Acresce um outro factor, de, digamos, concepção política: de há muito que uma greve se quer inócua, não impactante. Ao direito à luta por melhores condições de trabalho sobrepõe-se uma noção conservadora e imobilista de ordem pública, ideia que, de resto, parece ecoar bem lá no fundo dos entrefolhos do ser-português (a popularidade do Estado Novo assentava boamente no seu papel de “garante da ordem pública”, algo que o actual primeiro-ministro, aliás, não tem hesitado em assumir e explorar). Não são de excluir variáveis mais terra-a-terra, como anos a fio de difusão e análise mediáticas quase exclusivamente centrada nos impactos imediatos e visíveis das greves, em detrimento da exploração razoável das reivindicações que lhes estão na origem. Acresce, numa perspectiva civilizacional, uma completa marginalização dos conceitos de empatia e alteridade, que de algum modo se inter-relaciona com a neutralização fáctica da consciência das desigualdades sociais – sua origem, seus agentes, suas dinâmicas (seria interessante, neste seguimento, avaliar o papel de fenómenos agregadores como a equipa nacional de futebol de 11 ou reflectir sobre as consequências de fundo da tendência para a extinção acelerada dos estudos humanísticos). Finalmente, a espectacularização deste acontecimento. Como já aludi, a cobertura televisiva (em especial esta, mas junta-se-lhe a online, ambas violentamente competitivas, ambas miseravelmente reféns da pressa de “dizer primeiro”, de “mostrar primeiro”) tem sido notável. Estive a assistir há pouco a um “debate” protagonizado por representantes de alguns dos agentes directamente envolvidos e, sem que isso trouxesse fosse o que fosse à inteligência da discussão e apesar de claramente interromper e fragmentar as intervenções, foram feitos dois “directos” (ou foram três?) com repórteres que se encontravam perto de bombas de gasolina – e que tinham perfeitamente nada a assinalar. Pela amostra, aqueles desgraçados passarão a noite ali, junto a um qualquer posto em Portel ou em Aveiras de Cima ou no raio que os parta, sempre a postos para um novo “directo” – em que, de resto, o repórter é figurante: creio que ninguém o ouve, o que importa é a imagem, aquilo que a imagem diz, e as letras garrafais que cortam o ecrã em dois. Imagino agora à meia-noite, hora primeira d’A Greve – a loucura. Enfim, a precariedade no jornalismo faz maravilhas e dá amplo respaldo a todo este absurdo. A propósito: para quando uma greve no Jornalismo?
Um aspecto notável de tudo isto é este: a greve ainda nem começou. Tanto quanto sabemos, a greve que promete (ou prometia, já não sei bem que tempo verbal usar) lançar o país no caos pode não durar até ao almoço de amanhã, o fatídico dia 12. E que a ANTRAM dê sinais que levem os sindicatos a desmobilizar a greve é, neste momento, a menos provável das causas. A ameaça de requisição civil “preventiva” foi amplamente discutida (veja-se o delírio). Mas, não se tendo avançado para tal alarvidade, sempre se tratou de definir um conjunto de serviços mínimos que, das duas, uma: ou anulam quase por completo os efeitos da greve, esvaziando-a de sentido; ou são incumpridos e avança-se, aí sim, para a requisição civil (ao que vou percebendo, será impossível cumprir os serviços ditos mínimos: os motoristas insistem na indecência lesa-pátria de trabalharem apenas as oito horas regulamentares, sem trabalho extraordinário, o que, por si só, deverá bastar para levar ao incumprimento). Sobre esta última hipótese, o Governo já fez saber que montou um gabinete especial para a sua monitorização e ainda hoje ouvi o bom do António Costa a especular candidamente sobre a eventualidade de não acatamento da ordem de requisição civil e suas consequências penais. Pelo meio, o estado de “crise energética” foi decretado (na madrugada de sábado, dois dias antes do início da greve!), o que, se tivermos em consideração os preceitos legais que implica, é coisa séria. Não se pode olhar para um quadro destes e não ver nele um descarado ataque ao direito constitucional à greve. A discussão sobre a “proporcionalidade” dos efeitos da greve é, nos moldes em que tem sido trazida a público, perigosa. No limite, o entendimento tenderá para a ideia de Francisco George relativamente às greves de médicos e enfermeiros: não podem, pura e simplesmente, existir. A lei prevê, justamente, a figura dos “serviços mínimos” para salvaguardar as áreas de actividade que tenham impacto na segurança e saúde públicas, o que evidentemente não justifica a carga imposta pelo Executivo no presente caso. O precedente tinha já sido aberto com a greve cirúrgica dos enfermeiros, nos idos de Janeiro, isto já depois de pressões ilegítimas sobre os estivadores em meados do ano passado. Em todos estes casos, como aliás se tinha já verificado nas greves dos professores ou nas do Metro de Lisboa, tratou-se de criar um ambiente de “nós contra eles”, em que o “eles” representa os grevistas, sejam eles quem forem, normalmente apresentados como sendo já beneficiários de um conjunto apreciável de regalias e em especial de um vencimento no mínimo aceitável – sendo que este “aceitável” se define vagamente no confronto com a realidade nacional, uma realidade marcada pela desvalorização sistémica e estrutural do valor do trabalho, principal produto do chamado “programa de ajuda externa”. Convém talvez deixar claro que o facto de praticamente 2/3 dos trabalhadores portugueses auferir efectivamente um salário de apenas três dígitos não justifica ou sequer atenua um tipo de posicionamento que, no longo-prazo, é, ao nível colectivo e comunitário, auto-destrutivo.
A par do tema da “proporcionalidade”, outro tópico que tem tido grande atenção é o dos sindicatos independentes, seu modus operandi (usa-se mesmo esta expressão, o que é interessante) e seu valor sintomático daquilo que são, segundo a fórmula consagrada, os movimentos populistas que ameaçam a democracia (os populismos que ameaçam as democracias são por norma apresentados como entidades estrangeiras ao próprio sistema democrático, dir-se-ia de geração espontânea). No essencial, estes sindicatos independentes – leia-se, independentes das grandes centrais sindicais, que por cá são duas (2) – são tidos por perigosos justamente pelos problemas que podem trazer à boa da ordem pública que tocámos acima. Encontrando ou forjando territórios de actuação fora das esferas domesticadas da UGT e da CGTP, estes novos sindicatos desinstitucionalizam o movimento sindical, reinserindo-o num plano de conflito e confronto com o patronato e, mais genericamente, com o establishment. São, por isso mesmo, de imediato um perigo para a ordem social e pública. Até aqui, presume-se, estava tudo muito bem e não podia ser doutra maneira: as greves eram permitidas porque não tinham qualquer relevância; a imagem democrática estava garantida, bem como o status quo, só a luta dos trabalhadores é que era sempre o mesmo nado-morto. As centrais sindicais, histórica e estruturalmente ligadas a PS e PCP e parte integrante, cada uma à sua maneira, das suas estruturas internas (e, portanto, do próprio sistema de poder), sempre foram instrumentalizadas ao sabor das circunstâncias e, nesse processo, mostraram-se fulcrais a um estado de coisas que, sem exageros populistas, podemos classificar de paz podre. Pois se é certo que estas organizações (e agora refiro-me novamente aos sindicatos independentes), até por recorrerem às facilidades das redes sociais e afins com tudo o que isso pode implicar em termos de linguagem e narrativa, podem integrar elementos e dinâmicas que nos devem deixar em alerta, mais certo ainda é que na base das reivindicações profissionais e corporativas está normalmente esta verdade muito simples, indesmentível na sua essência: a actual organização do trabalho assalariado é uma das traves-mestras da má distribuição da riqueza, da desigualdade de oportunidades e da perpetuação da injustiça social. O pensamento económico que norteia a globalidade dos centros de decisão e opinião publicada faz a apologia do interesse colectivo em detrimento do interesse individual em linha com o que foi feito pelas ditaduras que dominaram boa parte do século XX, fossem elas fascistas ou comunistas. Por norma, a melhoria das condições de trabalho são tidas como um risco para os sacrossantos estabilidade & crescimento económicos, o que, de forma cada vez menos subtil, é propagandeado como uma ameaça para a condição de todos os outros trabalhadores ou corporações. No caso das greves, essa narrativa assume um carácter ainda mais premente, já que à eventual melhoria de condições que se reclama acresce, no imediato, o transtorno prático do protesto (visto, num racional perverso, como tão mais ilegítimo quanto mais efectivo). A cada novo protesto, dá-se um processo de isolamento do grupo grevista, numa dinâmica de renovação e actualização de “inimigos externos” que, como vamos observando, favorece e reforça os governos, ao mesmo tempo que vai determinando uma espécie de jurisprudência informal, para consumo público, cujo poder de dissuasão em futuras lutas profissionais não é dispiciendo.
Em suma, os passos que já foram dados – pela ANTRAM, pelo Governo, pela opinião publicada – no que diz respeito a esta greve de motoristas de pesados de mercadorias deixam um sinal que importa não menosprezar: os meios e, sobretudo, a vontade de bloquear um direito constitucional tão basilar como o direito à greve existem – e predominam – no sistema político português e na sociedade portuguesa. E, sem que a situação seja de excepção, pela segunda vez este ano, estão a ser levados à prática.

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