Do Corona


Acabo de ouvir uma declaração de José Alberto Carvalho, pivot da TVI, a propósito da actual crise pandémica e registada durante a transmissão do telejornal. Trata-se de um relato emocionado donde relevam dois episódios de cunho íntimo: um, sobre o falecimento de uma pessoa próxima de quem não foi possível, dadas as circunstâncias, despedir-se condigna e afectivamente; outro, sobre a situação mais ou menos abstracta de um médico que, por estes dias, para protecção dos seus, não pode dormir em casa, não pode tocar nos seus filhos, quadro simbólico da condição presente destes e doutros profissionais de Saúde. Mas o que seria a partilha de uma perspectiva que, apesar de pessoal, poderia ter a virtude de ser ilustrativa e, de certo modo, mobilizadora, acabou por resultar em mais um momento de desproporcionado e patético dramatismo dos muitos a que tem sido possível assistir nas últimas semanas – de que o discurso de Rodrigo Guedes de Carvalho tem talvez sido o pináculo.

A caracterização hiperbólica da actual crise pandémica – que vai de formulações como “a pior tragédia que já alguma vez enfrentámos enquanto Civilização” a descrições como “a mais mortífera pandemia do século” (o que é particularmente significativo quando testemunhámos apenas a primeira quinta parte do dito século) –, se bem que em linha com uma tendência cada vez mais frequente de sobre-adjectivar tudo (de que o mundo do Futebol é pródigo em exemplos, ele que, convém frisar, contamina como nenhum outro os discursos políticos, económicos e mesmo culturais), descredibiliza e, muitas vezes, ridiculariza aqueles que a protagonizam e desmerece daquilo que, para todos os efeitos, é uma ameaça muito séria à saúde pública.
Importa reconhecer que a pandemia se tem revelado uma decepção do ponto de vista mediático, muito aquém das necessidades espectaculares de uma indústria que, tendo investido bestialmente em canais exclusivos de “Informação” (e isto numa altura em que era já prática corrente a transmissão ininterrupta, 24/7), está sempre a correr atrás do prejuízo – como garantir uma emissão noticiosa tão intensiva e vasta? Como fazê-lo num tão voraz e implacável ambiente competitivo? Pior: como fazê-lo dentro dos cada vez mais exíguos limites da racionalidade económica e financeira, sobretudo aquela dos grandes grupos de comunicação?
As televisões (e isto concerne quase exclusivamente às televisões) apostaram incrivelmente neste evento. Têm sido diários e já de há semanas a esta parte os noticiários de quase hora e meia em que cada peça, cada directo (e se os há), cada entrevista dizem invariavelmente respeito ao novo Corona-vírus. Os canais especializados do cabo somam a estes noticiários um conjunto virtualmente ininterrupto de "especiais", fóruns de telespectadores, mesas de debates, espaços de opinião e análise – todos dedicados ao Covid-19. Esta mono-temática insana seria sempre injustificável e, inclusive, lesiva do por estes dias tão propalado Direito à Informação, fosse em que momento fosse; mas é-o ainda mais hoje, em que se vive uma nova crise petrolífera ou em que ressurge, em força, a tragédia dos refugiados nas fronteiras do Sul e Leste da Europa. Não se trata de negar a transversalidade do Covid-19, que tem implicações, de resto, nestes acontecimentos; muito menos de negar a sua, como soe dizer-se, actualidade; trata-se tão somente de sublinhar que este foco absoluto e exclusivo nesta pandemia nega, por um lado, a pura existência de tudo o mais e, por outro, não traduz nem reflecte o panorama nacional e mundial – antes produz, numa agudização talvez inédita do agenda setting, uma paupérrima e totalitária noção do Real.
O grau de valorização de um dado acontecimento decorre intuitiva e acriticamente da cobertura mediática de que é alvo. É um efeito natural julgar-se a gravidade de um evento com base na atenção que as televisões lhe reservam. Essa dinâmica fica exemplarmente demonstrada na actual situação. No caso vertente, tratando-se de um caso de saúde pública que, por isso mesmo, depende maioritariamente de algo tão precário e incerto como a responsabilidade individual, pecar por excesso pode ter as suas vantagens. Em contrapartida, este excesso parece fomentar fortemente a incapacidade para o distanciamento crítico, para a razoabilidade e bom-senso, para as noções de ridículo e de escala – o que, por sua vez, escancara as portas dos dramatismos de cordel, das neuroses e das histerias e, em última instância, da mais básica animalidade.

Para re-situar a reflexão, talvez ajude recuperar um trocadilho que, ao que parece, teve já os seus 15 minutos de fama e que dizia algo como – “Pior que o Covid é o covid-izer [qu’ouvi-dizer]”. Se bem entendi, esta expressão pretendia denunciar e alertar para os perigos da desinformação em torno deste assunto, em particular aquela que medra nas redes sociais. De facto, a avalanche pseudo-informativa desta malha tentacular é, simplesmente, ingerível. Seja pela forma, seja pelo conteúdo, seja pelo que verdadeiramente a move, tal coisa jamais servirá a indispensável função de Informar (nem seria legítimo esperar que assim fosse, é preciso que se diga). É certo, porém, que já lhe ocupou grandemente o espaço.
Dum ponto de vista dos comportamentos, tamanha torrente provoca manifestações de perfeita esquizofrenia, algo que só os mais desatentos podem questionar. A perfeita (e natural) ignorância generalizada em torno das ciências e práticas médicas (e mesmo das estatísticas da Saúde) é terreno fértil para que as mais inconsequentes e estapafúrdias hipóteses ganhem vulto, mesmo que durem não mais que o instante fugaz (como um fósforo) que vai da sua explosiva difusão ao imediato aparecimento da próxima vaga. Mas tudo isto adere maravilhosamente à plasticidade característica do Português. Com este vírus, uma população inteira de epidemiologistas veio à superfície. Subitamente, o nosso colega do lado mostra-se apto a explicar-nos os vários processos de transmissão de um vírus e o dono do café onde vamos tomar a bica afoita-se a descrever-nos com minúcia complicadas estratégias de contenção e mitigação de contágios virais. Mais: todos têm, garantem-nos a pés juntos, uma amiga médica ou um amigo advogado que lhes dá todas as garantias (as da pseudo-ciência, desde logo) de que o Brufen faz mal ou que aquele PDF que segue em anexo é o decreto do Conselho de Ministros que ainda decorre.
Mas vem depois uma segunda fase, a fase em que o Governo e as autoridades sanitárias começam a tomar decisões (que, aliás, nunca são boas). Aí surgem os juristas e os constitucionalistas, muitas vezes saídos de dentro do mesmíssimo colega que se revelara um especialista em epidemias. Mais interessante, porém, é o momento em que, especialmente quando foram já decretadas medidas de restrição dos comportamentos sociais, o Português se vê munido do pretexto ideal (moral, patriótico, civilizacional) para vigiar, julgar e censurar o Vizinho. Se saiu de casa, se ficou em casa, se meteu gel, se agarrou na maçaneta, se tossicou, se conteve a tosse, se foi ao pão, se veio do pão, se já de manhã tinha ido ao pão, se à tardinha foi outra vez, se... enfim, é um traço da personalidade colectiva nacional que tem raízes muito vigorosas, muito fundas, muito longínquas e que foi sendo actualizado ao longo dos últimos três ou quatro séculos. Não é algo que, numa palavra, se resolva com água e sabão.
Seria verdadeiramente notável se toda esta triste e preocupante situação fosse usada para repensar o nosso modelo de sociedade. Ou – porque isto é muitíssimo ambicioso – repensar pelo menos alguns dos aspectos de um modelo cujo racional é objectivamente perverso e errado. Desde logo, o Trabalho – bem entendido, o trabalho assalariado por conta de outrem. A circunstância inesperada do chamado teletrabalho em grande escala evidencia o absurdo de muitos dos actuais ritmos e dinâmicas laborais. Bastaria enunciar as horas infindas que passamos fora de casa – que facilmente chegam às 12 horas diárias – e que estão no cerne de tantas das nossas falências enquanto Sociedade: da poluição e sinistralidade rodoviárias ao semi-abandono das crianças em escolas e infantários; da fragmentação dos núcleos familiares à erosão (do que resta) da massa crítica; da irracionalidade financeira e económica dos fluxos diários à violência como condição-base da existência.
Será ainda principalmente do actual sistema laboral que decorre uma dinâmica que dalgum modo é possível inferir da percepção e concepção gerais da presente crise pandémica. O ramerrão do dia-a-dia gera nos indivíduos um tamanho vazio, um tal sentimento de absurdo que o surgimento de um fenómeno desta natureza se constitui, ainda que vaga e parcialmente, como algo que confere à vida um inesperado sentido – mesmo que estranho, mesmo que mórbido, mesmo que ilusório –, seja do confronto (imaginado ou não) com a precariedade da vida humana, seja da experiência de um evento a todos os níveis excepcional e previsivelmente histórico.

É utópico e o fenómeno da não-inscrição tem por cá um rico e monocromático histórico, mas esta crise constitui-se algo ironicamente como uma enorme oportunidade para mudar algumas coisas. A ver vamos.

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