Mor(t)alidade
A obrigatoriedade do uso de máscara – que, mais do que de enquadramento técnico-legal, é de substrato moral – é uma plataforma de acção sobre o Outro de enorme potência. Identificar o pecado alheio é fácil e imediato; e vai sendo crescente o poder efectivo, o ascendente moral, a legitimação pragmática para dar o passo seguinte: chamar o incauto à razão e, sobretudo, ao castigo.
O substrato moral da obrigatoriedade do uso de máscara tem
um inequívoco fundo legal e sanitário. Estabeleceu-se que, em certas
circunstâncias, o uso de máscara (o correcto, pelo menos) traz benefícios no
controlo da propagação viral. Mais marcante que esta dimensão técnica é,
contudo, a sua dimensão legal – a consagração na lei. Tornar um dado comportamento
obrigatório (ou proibido) por lei parece inspirar em alguns espíritos uma percepção
dogmática daquilo que é, é necessário frisar, um produto histórico.
Mas o que parece ser essencial a esta qualidade moral da
obrigatoriedade do uso de máscara é a noção geral de que a culpa da evolução da
pandemia (percepcionada como simultaneamente evitável e catastrófica) é de
todos e cada um. De todos e de cada um – dos outros. Já nos referimos a esta
dinâmica, que associamos ao efeito de uma engenhosa e hábil estratégia de gestão
e comunicação governamentais.
Esta moralidade manifesta-se de várias maneiras. Uma das
principais é a do controlo arbitrário do Outro. Aquele que se exibe em público sem
máscara sujeita-se a juízo sumário. A avaliação do risco do comportamento, que obviamente
varia conforme a circunstância, não conhece, neste contexto, nuances: ou se usa
e está tudo bem, ou se não usa e é por causa de gente desta que isto está como
está. Neste cenário, que articula pulsões que não têm nada a haver com a actual
situação pandémica, que vêm de trás (lá muito de trás), a mui indesejável polarização
das posições é, mais que uma tendência, uma fatalidade.
Esta dinâmica mexe ainda com uma outra a que já nos referimos
antes – a da autonomização muito marcada dos dois elementos que compõem o
binómio «risco de contágio-medida de prevenção». Assistimos a uma certa
ritualização (escusado será dizer que isso deverá levar à gradual erosão dos
comportamentos verdadeiramente úteis e necessários) daquilo que são as práticas
e os hábitos que cada um deve, indiscutivelmente, ter a responsabilidade de
adoptar para bem de todos. Um exemplo paradigmático disso é o das normas estipuladas
para o futebol. Impera uma inefável lógica de «dar o exemplo» e estabelece-se
então que jogadores e árbitros, entre outras pérolas, não se cumprimentem com
um passou-bem no início do jogo. Os mesmos jogadores e árbitros que, como é notório,
passarão as duas horas seguintes em intensa e constante proximidade física.
Nada nesta discussão é simples. Mas não há tempo para se
conversar serenamente. Ainda ontem, no jornal da 2, uma especialista tentava reflectir
sobre a dificuldade metodológica de, na prática, se medir o impacto isolado de
uma dada medida de controlo sanitário – o que é naturalmente uma dificuldade crítica
na avaliação e no desenho de qualquer estratégia desta natureza. Isto é o tipo
de matéria que, pela sua inevitável extensão e pelo seu carácter teórico, impacienta
os anfitriões televisivos. Ontem, às tantas, e apesar do apreciável poder de
síntese da oradora, a pivô começou a pigarrear e acabou a cortar-lhe puramente
a palavra. Perturbou-se primeiro, atalhou-se depois, uma linha de raciocínio a que
era do interesse público dedicar mais um par de minutos.
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Entretanto, enquanto este texto vai ganhando forma, António
Costa anuncia um segundo confinamento geral. Para já, um mês. O futuro a Deus
pertence, faltou dizer. A decisão, descaradamente pré-anunciada pelos meios de
comunicação há uma semana, surge com uma aura de inevitabilidade. De resto, uma
das mensagens governamentais de maior relevo que aqui se estabelece é esta: estamos
a fazer tudo o que está ao nosso alcance. A batata está nas vossas mãos. O
mais das gentes faz que sim com a cabeça e aprecia deveras este tipo de
actuação. O exercício da autoridade conforta-as, dá-lhes uma referência,
tira-lhes um peso de cima. De resto, fica a impressão de que são mais
frequentes as vozes críticas que acham que se peca por defeito que o contrário.
Nesta altura, a discussão centra-se muito mais no que não se fecha (escolas) do
que num questionamento de um novo fechar geral.
Mais uma vez, são os números que, per si, tornam inevitável a
acção governamental (seja ela qual for). De facto, o número de mortes
atribuídas à covid-19 tem vindo a aumentar nos últimos dias. O clima de medo,
tão ostensivamente cozinhado nos últimos meses, adensa-se. Um aspecto essencial
do presente momento histórico é, justamente, a cultura do medo. O medo é a
constante psico-social que impregna, que contamina todos os discursos – os
políticos e os mediáticos, os familiares e os privados. E, o que é muitíssimo
significativo, o último reduto dos discursos íntimos, internos, psíquicos.
Segunda-feira passada, dia 11 de Janeiro, terão morrido 122
pessoas de covid-19. Nesse dia, como aliás tem sido prática com outras
variáveis associadas à pandemia, os jornais e televisões encheram-se com mais
um “novo recorde”. Faltou dizer que esse desgraçado número de óbitos
representou, ainda assim, menos de 20% do número total de óbitos registado naquelas
24 horas. Nesse dia, morreram 633 pessoas (link).
Mais do que reiteradamente publicarem os números de forma
descontextualizada, os media continuam a ignorar olimpicamente os valores
inéditos da sobremortalidade verificada nos últimos meses. A pandemia define e
domina a agenda e isso é, até certo ponto, compreensível. Mas como é que se
pode compreender que um fenómeno destes, especialmente num contexto marcado por
temas ligados à saúde pública, seja a tal ponto secundarizado? Como é que se
pode compreender que não se investiguem as suas causas estruturais e
circunstanciais?
A narrativa oficial, essa, foi já ensaiando uma
neutralização do facto ao sugerir que a pandemia-que-tudo-abarca-e-explica provoca
mortos directa e indirectamente. A situação explica-se por si mesma: o SNS está
no limite por força da pressão exercida pela crise pandémica e, portanto, para
mais somando-se-lhe outros factores como o frio, a mortalidade dispara.
De acordo. Mas, sem que essa relação seja inválida, reduzir a equação a essa lógica seria branquear outros factores-chave, o maior dos quais, porque estrutural, é a sub-orçamentação crónica do SNS, que é muito mais uma orientação política do que uma contingência financeira.
Mesmo remetendo apenas à actual circunstância pandémica, e tendo em mente que passaram já dez meses desde o seu início, é legítimo questionar o Executivo sobre as falhas nos rastreamentos de contactos e nos inquéritos epidemiológicos, atribuídos por profissionais da área a falta de pessoal; sobre o não-reforço do SNS em camas, equipamentos e pessoal; sobre a efectividade da chamada rede de rectaguarda, que, soubemos hoje, apoia nesta altura 79 (!) utentes, 4% (!) da sua capacidade (link); sobre os porquês de não reproduzirem hoje a solução dos hospitais de campanha, como aconteceu em Março/Abril; sobre a gritante impreparação da chamada segunda vaga; sobre a implementação do avultado investimento em equipamentos e redes de suporte a um eventual ensino a distância que foi anunciado no Verão (link); sobre a racionalidade moral, social e sanitária de, passados meses sobre o início da crise, verem-se os hospitais forçados a suspender uma vez mais a actividade electiva; sobre, até, a impreparação do aparato para as eleições presidenciais.
Mais que isso tudo, e posto de forma analítica: importa destrinçar e ponderar duas
dimensões fundamentais, i) a crise pandémica e ii) a gestão da crise pandémica.
A primeira é a dimensão natural – a propagação do vírus, a doença que provoca. A segunda é a dimensão artificial – a resposta sanitária, a exploração do medo, o jogo político. O que é que, neste terrível saldo da mortalidade dos últimos meses, é devido a uma e a outra?
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Resta-nos talvez esperar que num futuro o mais próximo
possível consigamos encontrar alguma ordem em todo este caos.