As vacinas contra a covid-19: um salto de fé

Soubemos hoje que, AFINAL, a vacina da Universidade de Oxford e da Astrazeneca é mais eficaz se for administrada com um espaçamento maior entre a primeira e a segunda tomas. Inicialmente, o intervalo óptimo seria de até seis semanas. Agora? O dobro.

Soubemos outra coisa. As vacinas da BioNTech e da Pfizer podem, AFINAL, ser armazenadas com segurança a uma temperatura mais elevada que aquela definida como necessária durante o seu desenvolvimento. Dos -80º C originais, que obrigaram à compra de equipamentos especiais para conservação e transporte, aponta-se agora às temperaturas garantidas por um... congelador comum, para um período de até cinco dias.

Estas rectificações - que não são ligeiras rectificações - surgem quando decorreram mais coisa menos coisa oito (8) semanas da distribuição e aplicação generalizada destas vacinas.

Nada de novo. Tem sido assim em tudo. O conhecimento científico está, claro, em permanente actualização. Mas isto é outra coisa.

Calcula-se em dez anos o tempo típico de desenvolvimento de uma vacina. As primeiras vacinas da covid-19 esmagaram esse tempo-médio enfaticamente: dez meses (!).

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(fonte: esta)

Importa talvez ter em mente que muitas das doenças transmissíveis de maior impacto e mortalidade (Malária, Dengue, Zika, SIDA, ...) conheceram um período de desenvolvimento - i. e., da identificação do agente responsável à aprovação final e distribuição - muito (mesmo muito) maior que os dez anos típicos. Algumas delas, aliás, nem sequer têm ainda uma vacina aprovada.

Claro que tudo isto tem na base inúmeros motivos: estágio de evolução tecnológica e investimento implicado, demanda e lucro, existência de outros tratamentos (eficazes e/ou rentáveis), especificidades da doença (tipo de vírus responsável, formas de transmissão, geografia da incidência, etc.), entre outros.

Parece claro que a vacina da covid-19 nasceu da convergência perfeita dos factores ideais do desenvolvimento mais estupendo:

⇈⇈ demanda mundial ⇈⇈

$$ lucro garantido $$

◉ progresso tecnológico ◉

☢ pressão pública e política ☢

Tudo muito bem sintetizado por sob um diáfano manto de mediatismo.

São mais do que fundadas as reservas que o cidadão-comum possa ter (admitindo que as tem) em relação às vacinas para a covid-19. Mesmo considerando a tal tempestade perfeita de factores de desenvolvimento, todo o processo foi tudo menos transparente. E rectificações como as de hoje apenas reforçam essa impressão.

Acenar-se com a investigação que decorria já em torno de outros coronavírus, com a pragmática político-financeira do contexto actual ou com a extraordinária rapidez associada às tecnologias de RNA mensageiro e de vector viral - não colhe.

Assistir ao maior plano de vacinação da História da Humanidade, a um plano positivamente mundial de vacinação, numa fase em que ainda não é claro que se conheçam completamente as formas de contágio, enquanto ainda se fazem ajustes técnicos tão significativos como os conhecidos hoje, numa altura em que ainda não passou sequer um ano completo sobre os primeiros contactos com este vírus na Europa - não podem deixar ninguém descansado.

🂢

Por estes dias, o maniqueísmo e a polarização estão assanhados como talvez nunca estiveram. A censura de qualquer posição crítica é aberta e tem até um léxico bem definido. O que aqui deixo escrito tem, nesse deplorável dicionário, uma entrada específica: "anti-vacinas". Seja como for, é escusado, e mesmo perigoso, (tentar) responder à estupidez humana.

A Ciência merece toda a nossa confiança e toda a nossa adesão. Mas isso não invalida que a campanha mundial de vacinação em curso contra a covid-19 não se assemelhe, AFINAL, a um enorme salto de fé.

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