Alandroal no Vermelho

Quando, aqui há dias, tivemos o recamado privilégio de assistir nas televisões à apresentação da avaliação governamental prévia ao arranque da chamada Segunda Fase do Plano de Desconfinamento, não pudemos certamente deixar de estranhar a curiosa lista de «Concelhos em Risco» que resultou da dita douta avaliação. Isso deu-se por aquela altura da comunicação em que a mal reprimida revolta contra aquele pausado e grave paternalismo de ir ao cu ao passarinho que o nosso Primeiro tem vindo nos últimos meses a aprimorar nos ia já levando a interromper-lhe o solilóquio a cada nova sentença – quando ouvimos, numa altura em que um diapositivo anunciava os lugares perigosa e irresponsavelmente entre o Amarelo e o Vermelho do tenebroso gráficozinho quadrado que Costa brande de dedo em riste há coisa de quinze dias ou três semanas, a palavra «Alandroal».

Alandroal...?

O Alandroal estava, ficámos a saber, em risco. “Se daqui a quinze dias não corrigir a mão, o Alandroalzinho fica impedidozinho de avançar no Planozinho”.

Espera, Costa, por amor dos deuses, disseste mesmo Alandroal? Pois que disse Alandroal.

“É espantoso”, teremos murmurado, de beiço caído. Mas, enfim, não nos tem faltado com que nos banzar. Esta seria, afinal, apenas mais uma. Nisto foi o solene powerpoint chegando ao seu termo, seguiram-se-lhe umas perguntazitas entre o banal e o ignóbil pela trupe jornalística presente no evento e os astros que nos regem, indiferentes ao pequeno Grande Absurdo, deram curso à sua bem oleada rotação – e depois dessa Noite veio um novo Dia Velho.

Anteontem, porém, alguns dos autarcas cujos municípios haviam sido visados na infame lista pediram um encontro com António Costa. Ao que parece, havia umas arestazinhas a limar quanto à forma de cálculo usada na definição do risco. De acordo com os implicados, os sítios com pouca gente eram, para não fugir muito à ordem das coisas, prejudicados. Fomos então reparando um pouco melhor no que estava em causa. Para citar apenas alguns, Rio Maior, que contabiliza mais de vinte-e-um mil munícipes, tinha na véspera do encontro uns alarmantes 45 casos confirmados (aprox. 0,2% dos riomaiorenses); Ribeira de Pena contava, imagine-se, oito (!) casos – para mais, de acordo com o autarca daquele município, todos oito eram de uma obra numa barragem, um surto não só isolado como já devidamente cingido pela malha das autoridades sanitárias; e o nosso querido Alandroal contava com uns tremendos 28 (vintoito) casos – também eles curiosamente relacionados com um surto identificado num estaleiro de obras da ferrovia vizinha. Costa, à saída da reunião, disse mais coisa menos coisa aos microfones da rádio que – “Chegámos à conclusão de que estes surtos estão maioritariamente associados a ajuntamentos em habitações precárias e de lotação elevada de pessoal ligado a obras públicas e a colheitas agrícolas”. Muito bem. Vão então tratar de rever a forma de cálculo que promove cegamente restrições psico-sócio-económicas graves & abordar o problema social e laboral que está na origem destes apesar de tudo absolutamente desprezíveis números de novos casos, não é assim? Costa, aos microfones: “Vamos reforçar a fiscalização policial nestas áreas para fazer cumprir as regras de distanciamento e de uso de máscara”.

Ah.

E quanto ao valor-referência [<120 casos/100 mil habitantes ~ 14 dias], haverá alguma revisão? “O Primeiro-Ministro disse que essa medida é um referencial europeu e, portanto, é para manter”, informou o autarca de Rio Maior aos mesmíssimos microfones. E logo tratou de partilhar, numa retórica cuidada, que ele próprio tinha tido a oportunidade de sugerir ao Senhor Primeiro que fizesse o obséquio de considerar a hipótese de se desmobilizarem agentes da GNR ou da PSP dos concelhos de menor risco para os de maior risco, tendo em vista a realização de umas mui higiénicas e patrióticas campanhas de fiscalização. Parecia orgulhoso da ideia, o tipo. Até porque, segundo confidenciou, Costa achou lindamente e tratou logo de fazer uns telefonemas.

(...)

Mensagens populares deste blogue

Algo de errado se passa.

Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem

Os números COVID-19: ou latos em excesso, ou inconsistentes, ou pouco consolidados