Onde se fala de ferrero rocher com amor, de aquecimento global com despudor e onde cada frase emana um certo mau odor

O aquecimento global é um problema do caraças. Digam o que disserem, é, e não me venham com tretas. Houve até já quem, mui graciosamente, me perguntasse «concordas com isto do aquecimento global?», mas eu preferi fazer de conta que o café do dito-cujo tinha levado cheirinho em demasia e então chamei o empregado e pedi que lhe trouxesse um outro, desta vez sem xiripiti. Mas dizia, as suas implicações são teoricamente infinitas, basta que a gente dê corda aos sapatos e busque aqui, além e acolá, aqui em casa, além no armário, acolá no frigorífico, e teremos uma percepção mais real do imbróglio em que nos meteram. Sim, meteram, não me venham cá com estórias também em relação a isto, que nós não temos culpa de nada, eu, pelo menos, lavo as minhas mãos, que se isto está assim é porque, enfim, houve uns e outros que não quiseram saber, largaram, emitiram e por aí adiante e agora amanhemo-nos, não há volta a dar, estamos condenados, seja a restrições brutas, seja a um calor impossível. Em suma, a culpa é dos americanos.
Mas vamos lá ao que interessa, que não estou para brincadeiras, muito menos para rondar, andar à volta e não penetrar, como dizia o outro. É sabido que o ferrero rocher só se vende no inverno, jogada de marquetingue do mais alto calibre, pois valoriza-se o produto em nome de, pasmem-se, uma verdade indesmentível (não é como a outra que não passa de inconveniente) isto é, que a dita delícia, em tempo quente, perde qualidades. Pois bem, aqui surge a questão: e agora que o tempo quente tem insistido em ficar mais tempo, como vai ser? Não bastava já que as moscas e as carraças se aguentassem por mais uns meses, como está em perigo iminente a sobrevivência do unanimemente considerado melhor motivo para chegar o tempo frio.
Em comunicado oficial, os ditosos fazedores do chocolatinho empatucado de castanho e dourado já deram a saber que, e passo a citar, Somos a tal ponto zelosos que, em nome da alta qualidade do nosso prodigioso bombom, e a verificar-se fatalmente o aumento global da temperatura ambiente, nos veremos forçados a fechar as fábricas. Pois se, no passado, uns diziam «tudo pela nação, nada contra a nação», se, no presente, está implícito nas entrelinhas de tudo quanto seja acção de todo e qualquer um dos governos que nos tem calhado, basta estar atento e ler, que é «tudo pelo défice, nada contra o défice», nós proferimos, orgulhosos do trabalho até esta data levado a cabo e decididos a fincar pé e levar a nossa avante, TUDO PELAS CONDIÇÕES IDEAIS PARA O FERRERO ROCHER, NADA CONTRA AS CONDIÇÕES IDEAIS PARA O FERRERO ROCHER! Portanto, se de facto se der o caso de estar quentinho até no inverno, não há mais ferreros rocher para ninguém, a não ser no mercado negro, onde, desde já afirmamos peremptóriamente, não teremos qualquer participação ou ganho. Vossos criados, os cozinheiros, fim de citação. Caso para escancarar a boca, descair os queixos, arregalar os olhos, ouvir Anastacia, pânico geral, histeria e suicídio em massa, tudo ao molho e fé em deus: está em perigo o ferrero rocher!
Pois bem, nem tudo são rosas, mas diz-nos a história e a voz dos mais antigos que é da tormenta que nasce a luz. Ou seja, era este o tónico que a população precisava. De hoje em diante, a diminuição das emissões de gases com efeito de estufa não só deixará de ser um tema oco para conferências de milhares de participantes em ilhas paradisíacas, como será efectivamente feita, e não pensem os mais cépticos que com contrariedade ou por condenável ecologia comercial, mas, isso sim, com prazer e regozijo, com férrea e inabalável vontade, por todos os quadrantes da sociedade, dos mais ricos aos mais pobres, dos mais estúpidos aos mais inteligentes, dos mais gordos aos mais magros. «Os ferrero rocher não desaparecerão dos nossos armários!» será a máxima desta autêntica revolução de hábitos e costumes. O zé povinho e o dê-érre, juntos na mesma causa, farão das tripas coração, contra ventos e tempestades, que água mole em pedra dura tanto bate até que fura, tudo se resolverá concerteza, o futuro é risonho, que isto águas passadas não movem moinhos, em frente é que é o caminho. Será um regalo para os olhos.
Bom, não é preciso dizer que o tal comunicado oficial nunca existiu, e atrevo-me até a dizer que nunca existirá, de modo que, para evitar comunicações inúteis no presente texto, todo ele objectivo, sério, rigoroso, etc., etc., não o direi, como, aliás, não o disse, e quem isso afirmar é um declarado mentiroso, um perfeito intriguista, como aqueloutros que acusam sem pudor os nossos bonitos mandantes de dizerem uma coisa hoje, fazerem outra amanhã e, se isso lhes der jeito, desmentirem as duas ao terceiro dia. Mas, como dizia a outra, «não vá o dia apetecê-las», ou, se preferirem, é melhor prevenir que remediar. Toca a consciencializar, toca a reciclar e pronto, quanto a isso do reduzir e reutilizar, esqueçam, que isso não vende, e vamos lá todos a dar o nosso contributo para impedir que ilhas fiquem submersas, que diversas espécies animais e vegetais desapareçam e que, obviamente mais importante, indubitavelmente primordial, o ferrero rocher deixe de forrar o nosso estômago nas noites agrestes do inverno.
Obrigado por este bocadinho e, já agora, feliz natal.

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