Night audit

Cá pra mim, diga-se o que se disser, há cultura de facilitismo nas escolas, opinou o rapaz de pele oleosa, as palavras enroladas na espuma da cerveja, a camisa desfraldada com duas manchas ovais de suor nos sovacos. És capaz de estar certo, articulou vagamente o velho, de olhos fixos nas carnes flácidas e curtidas da dona da tasca, seu fetiche confessado. O alcóol parecia não ter efeito nele, bêbado há vários anos. Então não vê isto dos exames de Português e Matemática, continuou o mais novo, se há maior descaramento, maior falta de rigor, Ó Marília, minha flôr, avia-me mais duas, cortou o velho, arrastando cada sílaba, e depois dirigiu-se ao rapaz, Mas ouve lá uma coisa, que proveito é que as escolas e o governo teriam em facilitar as provas, Dá jeito prà estatística, está visto, retorquiu o mais novo, e vazou o resto do copo, num desconsolo. O velho, entretanto, já estava mais interessado no que se passava do outro lado do balcão. A miopia impedia-o de ver com alguma clareza à distância, de molde que os seus olhinhos piscos lambiam avidamente as carnes penduradas da tasqueira de cada vez que ela passava ali mais próxima. Ó homem, eu transpiro que nem um cavalo, mas você baba-se mais que um boxer, até dá dó, atirou-lhe o rapaz a olhá-lo de soslaio e com o copo colado ao beiço inferior, que lhe tremia de frustração. O velho fez que não ouviu. Então e isto do referendo irlandês, que me diz, perguntou o rapaz depois de sorver religiosamente duas imperiais em silêncio, Digo que assim nunca mais nos livramos desta balhana do tratado, rosnou o velho com as suas rugas de mármore, Está-me a dizer que os irlandeses deviam ter votado sim para despachar isto, Estou, Mas se eles não querem o tratado, ou se desconfiam dele e dos seus autores, das intenções, dos objectivos do documento, acho razoável que eles tenham votado como votaram, És capaz de ter razão, atalhou o velho, e, com o copo meio cheio suspenso a caminho da boca, bradou, Marília, minha linda, mais duas fresquinhas, faz favor. Uma hora passou sem que trocassem uma palavra, a não ser para confirmar cada nova rodada.

Já o relógio se aproximava das cinco da madrugada quando o rapaz saiu a enfrentar a noite húmida. Tinha os nós dos dedos esfolados por ter pregado mais dois sopapos nos queixos do velho. Era sempre assim. Chegado o fim de mais uma noite, o velho, rejeitado uma vez mais pela senhora da casa de pasto, destratava-o e humilhava-o, fazia dele bode expiatório, Vejam-me bem isto, este rapazolas, além de beber à minha conta, ainda me disputa a cama, e ele já nem as pensava, saturado daquelas cenas e encharcado de alcóol esmurrava-o logo. Quero lá saber que seja presidente da Câmara Municipal, pensava ele ao dobrar a esquina, o vento a grudar-lhe a camisa às axilas molhadas de suor, Não passa de um traste, e já a cabeça arreliada com outros assuntos, A noite não está muito má, dormirei bem no mesmo banco de ontem.

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