Condições mudas

Comovo-me com o sofrimento alheio. Não falo daquele sofrimento extremo dos «dramas humanitários» a que as televisões gostam de dar cobertura, nem sequer daqueloutro sofrimento orgulhoso, beato e folclórico, que gosta de se exibir em público. Comove-me, isso sim, o sofrimento real. De resto, não concebo uma vida cheia sem a sua quota-parte de sofrimento real. O sofrimento real é o último reduto da beleza humana. Justamente, o Progresso pretende dar cabo desse reduto final, envolvendo-o num manto de maquilhagem, analgésicos e diversão. O Progresso fez da pressa e do barulho as traves-mestras do dia-a-dia.
O mundo da felicidade são dois olhos borrados, os lábios empastados de batôn encarnado. "Sê feliz" é a Nova Ordem Mundial, que se nos impõe na forma de vontade íntima e espontânea. Não concebo que a felicidade possa ser alcançada sem que pelo meio haja tristeza. (não uma tristeza qualquer, mas uma tristeza franca e livre.) Dir-se-ia mesmo que a tristeza é o caminho para a felicidade. Isto no remoto caso de ambas as condições existirem, ou de para uma e outra existirem caminhos. É ainda possível que tudo isto não passe de mais um embuste de língua, desses em que as palavras não são o que dizem e são tudo o que temos. Felicidade e tristeza são porventura condições mudas, que não se deixam dizer. E muito menos se deixam escrever.

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