Do sistema fiscal

Só por si, a fraude fiscal custa (mais) impostos, não só pelos mecanismos de polícia fiscal e de carácter administrativo que faz introduzir num sistema (quiçá inapelavelmente) pesado e caro, como pelas, por assim dizer, compensações que, apesar de frequentemente omitidas no discurso político, sempre se verificam. Isto é dizer que, se todos pagassemos, todos pagavamos menos.
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Na outra face da moeda encontra-se a canalização d´impostos para fazer face às necessidades da sociedade e do aparelho do Estado, em teoria aquilo que está a montante de toda a acção tributária. Quero dizer, a cobrança de impostos deve cingir-se ao estritamente indispensável (seria interesse tentar balizar e nomear o que é isto do estritamente necessário - assunto de grande sensibilidade nos dias que correm). Justamente, se, por um lado, o sistema fiscal se vê a braços com o virulento problema da fraude fiscal - cuja responsabilidade recai facilmente sobre os contribuintes -, do lado oposto da trincheira os contribuintes assistem a uma falha formalmente idêntica por parte dos agentes da máquina fiscal: no mínimo, muitas reticências se devem colocar quanto à distribuição e aplicação dos dinheiros públicos, desde logo no que diz respeito ao funcionamento do aparelho do Estado (a maior parcela do Orçamento estatal).
Obviamente, uma e outra fraudes estão umbilicalmente interligadas, o que acrescenta complexidade aonde o nível de complexidade era já um penoso óbice. Ademais, esta dinâmica fraudulenta gera toda a sorte de comportamentos contrários a uma cooperação colectiva para um bem comum.
Tal dinâmica de fraude convida a mais fraude, sobretudo na medida em que os cumpridores, mais do que não serem reconhecidos e recompensados, são isso sim sobrecarregados e prejudicados. Aqui se aplica o aforismo inconclusivista de que o crime compensa e o masoquismo não é motivação.
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Em larga medida, o que faz falta é moralizar o sistema fiscal. Um gigantesco obstáculo a esta meta é (à semelhança de tantos outros problemas da nossa civilização) a sobrepopulação. A sobrepopulação fomenta, a título d´exemplo, a criação de lóbis, ou grupos de interesses, que em regra sabem levar as suas avante. No entanto, sendo o sistema fiscal, como nota Saldanha Sanches, um jogo de soma zero, aquilo que excepcionalmente (ou nem tanto) se condescende a uns terá de ser compensado pelos restantes (as tais compensações).
A sobrepopulação obriga ainda a um cúmulo de quantificação de matérias não subjectivas como a «capacidade contributiva», o que, pela sua insensibilidade geométrica, está na base de diversas injustiças fiscais (seja no que se exige, seja no que se alivia).
Além disso, o profundo anonimato que define uma comunidade sobrepopulosa dificulta sobremaneira os mais elementares mecanismos de controlo e responsabilização entre contribuintes, bem como entre Estado e contribuintes e vice-versa. A lista dos malefícios inerentes à sobrepopulação em matéria fiscal não fica (nem de longe) por aqui, mas estes pequenos exemplos já são ilustrativos quanto baste.
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Posto isto, é legítimo idealizar propostas que dalgum modo esbatam e minorizem estas complicações. Pondo de parte um projecto nacional de extermínio dos indesejados e pestiferados, é de crer que uma acentuada desnacionalização do aparelho fiscal seria um caminho frutuoso. Utopicamente, cada bairro (nas cidades) ou cada núcleo habitacional (nas aldeias) seria autónomo e organizar-se-ia consoante as suas peculiaridades no respeito por uma estratégia de escala mais alargada (nunca contudo de escala nacional). Contribuintes e agentes fiscais adquiriam assim uma cara e um nome conhecidos por todos e o Ciclo do Imposto tornava-se inteligível e menos permeável a fraudes. O fosso entre uns e outros tendencialmente era anulado e o princípio de Locke (de 1688) de que a cobrança de um imposto não pode nunca ser executada sem o consentimento do contribuinte poderia ser de facto posta em prática.
Voltando à terra, onde um Estado de 10,5 milhões de almas é considerado pequeno, uma medida que desde logo poderia ser implementada seria a neutralização do IVA, estipulando uma taxa única e eliminando as três categorias actualmente existentes. Em primeiro lugar por isto: que critérios nos permitem fundamentar de forma consensual a descriminação da taxação? Em segundo, por isto: em termos logísticos e de aplicação, o reajuste seria simples (para os legisladores e agentes dos impostos) e simplificador (na óptica dos consumidores).
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Para todos os efeitos, não será despropositado colocar em cima da mesa a possibilidade de tributar somente o consumo, deixando a salvo de impostos os rendimentos (nomeadamente os salários).

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