D´A Queda

Ao deitar tenho já a «idade dos projectos por concretizar». A «idade dos sonhos» ficou lá atrás, algures no caminho. À distância, distingo as manchas que lh'ensombram a memória; e adivinho, ou entrevejo - mas sem admitir, sem desmascarar -, os momentos & acontecimentos que determinaram, em toda a sua aparente insignificância (na sua inofensiva trajectória), a remordente chegada a esta noite prematura. Noite prematura a qual, sem embargo, m'inspira um certo - meço bem o que digo (creio) - orgulho. Orgulho, sim. Orgulho talvez de ter consciência. Porque sinto-o como a uma certeza absoluta: velar o Sono dos Injustos é condição universal do processo de envelhecimento. E, de processo se tratando, o adormecer é justamente o tribunal do Grande Julgamento: aquele em que respondo perante mim.
.
O novo dia acorda o corpo dorido, arranca-o à absolvição do sono - para novamente o exibir nu, cara-a-cara, à imagem reflectida daquele que o julgou (que o julga ainda). Estou como aquele saudoso Clamence, que exercia no Mexico-City, em Amesterdão: a condenação é mais leve - muito mais - que o julgamento.
Ao acordar tenho a «idade da esperança». A «idade dos projectos por concretizar» não teria lugar se a não antecedesse - se a não preparasse - a «idade da esperança».
Coloco o pé na rua com a ânsia incontrolada do recluso que intenta a fuga (para onde? para quê?). Cada gesto meu exprime essa ânsia. Cada pensamento. Mas logo me cruzo com alguns desconhecidos de todos os dias. Logo partilho a manhã com o resto da manada. Estas anónimas caras familiares são o terreno óptimo para a fugaz «idade da esperança»: perto destes bardamerdas, qualquer um é hércules. Estes preceituados reencontros são a minha toma diária de placebo.
Sei os dias de cor. Há nesta angústia, todavia, boa dose de conforto: a repetição, levada ao ridículo, assegura-me - não me deixa esquecer - o orgulho que digo sentir. De tal maneira que, no café, gosto de m'encostar ao balcão e, através da névoa quente que sobe da chávena, espreitar-me nos outros.
.
Caminho a passos largos para a «idade dos projectos por concretizar». Repito para mim mesmo que não sou o único; sequer o único que sabe. A partir de certa altura, porém, desejei-o; desejei ser o único a caminhar diariamente, viciosamente, para o Grande Julgamento. Assim fosse, e tresmalharia. Assim fosse, e poderia ver os outros de fora - em tais profundezas, veria sobre os outros. Mas não caminho sozinho nesta solidão imensa. Neste normal e triste baixio, é a mim que, noite após noite, revejo como se fora outro.
.
Não levou muito tempo a que visitasse com assiduidade o álcool. A embriaguez tornou-se para mim uma casa e, sobretudo, um segundo sono - uma segunda absolvição. Existe, no entanto, uma diferença essencial: neste segundo sono, como no adormecer, decorrem novas sessões do Julgamento (que, presumo, não acaba nunca); não obstante, uma vez ébrio, é como "inocente" que m'instalo no banco dos réus. O conchego cálido do álcool imuniza-me de qualquer corrente de ar frio. Com ele, sou novamente um hércules, dispensando inclusivamente os recontros quotidianos com os meus semelhantes.
O álcool aparta os seus delicados e insinuantes joelhos de mulher e recebe-me maternalmente no forno compreensivo do seu ventre. Embebedo-me e então sou feliz para sempre: nessa casa, nessa mulher que não é só carne, nesse segundo sono, nessa segunda desesperada tentativa de remissão.
Antes do álcool, veio o cabelo rapado. Ou veio depois. Não sei, não posso garantir. E pouco importa, na verdade. Tudo importa pouco, e eis o que importa e posso garantir. Rapo o cabelo e aprendi a suportar o que o espelho me devolve. Rapo o cabelo pela ordinária mutilação, enfim. Acho até que me favorece.
Para contrabalaçar - para reconstruir - produzo versos:
.
São os povos capazes públicos.
(Seus capatazes? Estúdios.)
A condição essa apoucados,
nela se aninham - indignados!
.
Dou-me portanto ares de poeta, dramatizo-me para me satisfazer - para me justificar - e sei-me falsificado. Sou produto dum circuito espectacular que reza mais ou menos da seguinte maneira: o cinema imitou a realidade, ciente de que o fazia; mais tarde, veio o tempo em que a realidade, sempre por terminar, imitou, sem qualquer declaração de intenção, o cinema; que novamente a imitou, desta feita já meio dubiamente, como inconsciente de que imitiva uma imitação de si mesmo; e com o tempo as imitações imitadas diluiram-se e ilibaram-se mutuamente, ao ponto de a realidade não saber mais quem era; e eis que tudo é contrafacção, pastiche ou mercadoria. Até que só o cinema é verdadeiro na sua mentira. Até que única verdade verdadeira da vida é a mentira que lhe dá sentido.
.
Talvez gostasse apenas de ter mais barba e um escritório em Manhattan. Seria detective privado e viúvas perigosas de batôn carregado desfilariam em camâra-lenta as suas pernas encantadoras no trajecto entre a porta de vidro-fosco e a secretária por envernizar. Uma vez sentadas na cadeira que lhes oferecia numa vénia, era o decote que falava. E eu fumava. E trazia uma pistola. E jantava martinis a desoras, andava sempre com o mesmo fato beige e - sobretudo - não dormia: descansava um par d'horas e saía ao raiar da aurora, para tomar um café de jornal enrolado no sovaco. A minha vida conhecida durava umas duas horas, mais coisa menos coisa, e acabava invariavelmente num ecrã negro de letras brancas que ninguém lia, onde aproveitava para mandar todos à merda. Por lamentar ficavam apenas as pipocas caídas aos pés no fim da sessão (o velório repetido) e as entrelinhas por decifrar. Seria, eis o quê, o fazedor da minha própria mentira. Seria o realizador da realidade com quem contracenava.
.
Mas vem o fim da tarde, o fim duma idade. E, apesar dos pesares, o sol-posto é o meu sol favorito. É esplendoroso mesmo na sua decadência. Ou melhor, pela sua decadência. Gosto de pensar que o sol tem as competências adequadas para ser um deus por isso mesmo. Opostamente, os homens, eternos cordeiros fazedores de ídolos, não conseguirão jamais preservar a sua dignidade na apoteose da agonia. A demência da velhice, a ambiguidade da morte só adiada (ora cruel, ora libertadora), a dignidade (finalmente) extinta, tudo isso se m'afigura como um intolerável concentrado vital, ou, por outra, uma sinapse demasiado longa e demasiado brutal.
Resta-me gozar a rota (lembro-me de que alguém me cantou algo parecido com isto). A nenhures chegarei, de resto. Os ingleses é que o dizem bem: going nowhere fast. É estranho, no entanto, que, mesmo sem chegar a sítio nenhum - como se nunca saísse do mesmo sítio o tempo todo -, a vida, como se chegasse, termine. É por isso que penso que a vida não é, como dizem, uma "viagem". A vida, do meu ponto de vista, é um "tempo". Um tempo de crença, sobretudo. De crença nas respostas que inventámos e sabemos erradas. Pensando bem, isto talvez se verifique somente no caso de fazermos as perguntas certas. Seja como for, a vida será um tempo que, repito, importa que importe pouco: para que não nos achemos demasiadamente tristes com a nossa própria tristeza - para alfim que sintamos orgulho da nossa noite.

Mensagens populares deste blogue

Algo de errado se passa.

Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem

Os números COVID-19: ou latos em excesso, ou inconsistentes, ou pouco consolidados