Portanto

Portanto, tu não estás. É estranho, porque estive este tempo todo a contar-te o meu dia, a falar-te do que fiz para ocupar a tarde, para vencer as horas da tua ausência. Falei-te de ter ido ao supermercado comprar desodorizante e de lá ter ficado mais de uma hora a ler os rótulos dos shampoo para automóveis. Falei-te de ter ido para a esplanada com um livro na mão mas que na hora e tal que lá durei mal lhe passei os olhos. Falei-te de facto disso tudo, contei-te o meu dia, porque tu existes em mim mesmo não estando. E quando estivermos juntos, se estivermos juntos, não te vou obviamente repetir tudo. E então não te vou contar nada do meu dia de hoje e de como fui miseravelmente vencido pela dor da tua ausência. Talvez me digas que não te conto nada; que não te contei, por exemplo, como foi o meu dia de hoje, e aí vou estranhar, porque isso não corresponde à verdade, porque te conto tudo, porque te falo todos os dias dos meus dias e hoje, posso jurar-to, não foi excepção, e talvez até me chateie contigo porque afinal de contas não ligas ao que te digo e depois ainda tens a lata de me vir cobrar que não te conto nada. Mas tu não estavas. E como não estavas não me pudeste ouvir a contar-te como tornei do supermercado com três sacos de compras pendurados nos pulsos, a vincarem-me a pele e a arroxearem-me as mãos porque já não cabiam na caixa da mota, claro que devia ter pensado nisso antes, a caixa não é grande, mas eu ia só comprar desodorizante, porém deu-se o estranho caso que, em percorrendo aqueles corredores brancos e organizados, fui metendo ao cesto uma data de tralha que naquele momento me fazia mesmo falta, olha isto, e mais aquilo, e areia para o gato, e gel sanitário, e bolachas de chocolate, e apenas me apercebi que exagerara quando passava os últimos códigos de barras na máquina de pagamento self-service: quatro sacos bem cheios mais os cinco quilos de areia para o gato. Chegado ao estacionamento passei alguns dez minutos a ensaiar a melhor maneira de carregar tudo de volta a casa, o que se traduziu nos tais três sacos pesados nos pulsos. Pelo caminho, ri-me muito de mim e da maneira como os outros condutores me olhavam. Pensei – tenho de lhe contar isto. Se há vantagem em não estares então é esta: no momento em que pensava – tenho de lhe contar isto – estava já a fazê-lo, como se realmente ali estivesses comigo, o que pensando bem não tem grande nexo, pois se fosses comigo era inútil relatar-te a cena, bastava rir-me contigo. Assim, não só te relatei a cena, como gozei a tua presença impossível e ainda me ri contigo. Soa a perfeição, não é? Tu flutuavas algures à minha direita, à altura dos meus ombros. Gosto de me rir contigo porque quando nos rimos não dizemos palavras e fica qualquer coisa dentro do peito que não sei o que é mas é boa e que não tem como ser mal interpretada. Quando te conto os meus dias sem estares comigo não tropeço nas palavras, nem faço pausas a escolhê-las. Sinto que me sei explicar e sobretudo que tu me entendes. Imagino-te a sorrir tranquilamente enquanto me ouves, contente por saber como passei as horas da tua ausência. E apesar disto não lido bem com a tua ausência. Felizmente, não me acostumo a ela. Não dispenso o teu calor, o teu peso e o teu cheiro. Não dispenso a tua saliva, o teu hálito e a pressão dos teus dedos no meu corpo. Não dispenso a tua voz. À janela sobe-me o amarelo fosco dos candeeiros submersos no nevoeiro denso que toma conta destas ruas à noite e engole edifícios inteiros. Abraço-te com força, numa pressão constante, e respiro-te o perfume do cabelo. Contei-te tudo o que fiz hoje e já me cansei de me ouvir. Por isso te abraço e te respiro apenas. Acalmo-me, assim. Venço, assim, a dor da tua ausência. Estás aqui deitada comigo, as tuas pernas nuas enroladas à minha volta, os teus lábios entreabertos, incrivelmente reais essas pernas, esses lábios, e então abraço o vazio imenso que esteve ao meu lado o dia todo, já vencido, exausto, como que rendido à tua ausência. Amanhã, talvez.

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