Palavroso

Palavroso: transbordante de palavras, ávido de algum tipo de concretização de extensão do ser, sedento de fazer alguma coisa, de ser alguma coisa, de alguma coisa, de coisa alguma, rebento mil vezes parido, outras mil morto matado de morte macaca, projectado num futuro que me não pertence, onde meramente me projecto, onde passo e não fico como o vento passa e fica, sem consolo por me debater pelo menos tanto e tão bem quanto a mor das gentes no trapézio fideputa que emoldura a minha vã existência, questão de tempo até morrer duma vez por todas, nascido num dia de dezembro, vivendo num eterno dezembro, num perfeito dezembro, inverno até nos dias de sol, mas feliz sem embargo por ter nesta invernia uma espécie de conforto que não é fruto de um acomodar que me envergonharia perante mim sobretudo, uma espécie de conforto todavia morno e mal requentado, palavroso já sem nexo e sentido, debitar, vomitar, despejar, cagar, mijar, ejacular, verbos no infinitivo, verbos no infinito, infinito de verbos paralisados, músculos atrofiados, mentes mirradas, almas mutiladas, amores adiados, mortes adiadas, previstas, previsíveis, vidas sem amor, sem rumo, apenas com a certeza angustiante do amanhã, somente na certeza certa como a morte que amanhã virá, que daqui a três meses vamos de fim-de-semana para o raio que ta parta, que no ano que se vem vamos estar a morar aqui, que daqui por quarenta ânus me reformo, que daqui por cinquenta vou começar a ter muito medo diário e fresco e reciclado de morrer muito, de morrer mesmo e já não me vir novamente, de já não ver o pôr-do-sol nunca mais, de ter lágrimas secas por dentro dos olhos a queimarem-me o céu da boca e o fundo da cabeça, de ter a coluna a ranger, os joelhos a gemerem, os pés feitos num oito, a minha vida toda lá atrás, já passada, mal passada, em sangue, como um bom bife de vaca que vai bem com batata cozida e três copos de tinto vinho, mas depois é tarde, é de noite e é de vez, viola-me, viola-me viola-me viola-me, gritaria o sólido caixão de madeira e rendas brancas de seda de sexo de sida de cidreira, um bom chá de cidreira, quente, o fumo a subir entr’os meus olhos e a vidraça batida plo vento, pla chuva, batida em claras do castelo no topo da colina amuralhado em toda a extensão e os mouros a tomarem de volta lisboa dizendo Esta merda é toda nossa olé, o árbitro apita três vezes a dizer cacabou e os jogadores trocam camisolas num fundo de aplausos desportivistas, um homem de guitarra perpendicular ao corpo grita ao microfone e espanta-me os sentidos que, nesse momento, parecem ter no meu peito o seu ponto convergente, nevrálgico, donde partem para as extremidades dos dedos, para onde tornam depois de. Quase que fui, quase que sou, quase que ia a tempo de me aperceber e então mudar e então ser e – então! – poder rir do QUASE, poder escrever QUASE QUASE QUASE sem sentir o coração a bater mais forte, sem sentir um arrependimento de tempo perdido de vida perdida de caralho que ma foda, sem me sentir perdido, desperdiçado, destroçado, praticamente demente, estou inclemente, sou impotente, e eis que afinal talvez todavia porventura esteja somente submerso nesta imensidão de notas musicais perdido de amores perdidos, labirinto que inventei e agora não tenho como me desenvencilhar dele, nem ele de mim, desgraçado, desgraçado de tanta graça que podia ter sido, que podia ter acontecido, que quase foi, que quase aconteceu, quase

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