Do discurso de João Miguel Tavares


Aqui há dias fui convidado para deixar um pequeno testemunho numa iniciativa da minha escola. A ideia era muito simples: partilhar, numa intervenção de uns três minutos, a minha experiência de estudante, contemplando sucintamente os contextos do modelo de ensino, da escola e do curso. Num primeiro olhar, dir-se-ia que os caminhos a percorrer em tal acto são muito concretos e previsíveis. A brevidade da comunicação, o seu objecto específico, o próprio contexto (não isento de estranhezas e formalidades), tudo sugeria uma certa banalidade de conteúdo e uma dada contenção de forma. Se a isto somássemos a minha falta de costume nestas andanças e uma relativa escassez de tempo para uma reflexão maturada sobre o assunto, seria talvez razoável esperar que qualquer pessoa que minimamente me tivesse acompanhado neste percurso conseguisse, nos seus traços gerais, prever com sucesso aquilo que seria o meu testemunho. Não era o caso, mas fosse aquela uma ocasião que encerrasse em si o potencial de algum tipo de benefício para a minha pessoa, fosse ele real ou imaginado, e esta ideia ganharia ainda mais força, na medida em que, em tais circunstâncias, é da natureza humana tender (ainda mais) para o convencional, para o politicamente correcto e para o elogio dos presentes (mesmo que não sejam, de forma directa, o objecto da comunicação).
Constatei, porém, que este pacífico e circunscrito ponto de partida permitia, algo surpreendentemente, um assinalável conjunto de abordagens. O discurso de feição documental, feito de cronologias e impressões pessoais (que o fariam oscilar entre uma factualidade desinteressante e uma quase-ficção expectável e conveniente), era apenas uma delas. O tema e motivo da participação, fosse pelo seu cariz pessoal e empírico, pelo seu potencial enquanto base para uma reflexão mais abstracta e abrangente ou pelas áreas críticas que implicava, revelava-se, afinal de contas, extremamente fértil. Mas talvez mais sumarento e frutífero era o lado pragmático da iniciativa – bem entendido, tratava-se de um acto público, de uma comunicação para outros. A questão tomava, a este nível, uma carga notável: subitamente, via-me perante uma decisão – e digo isto numa síntese retrospectiva – de carácter moral. Isto é, preparar e partilhar um testemunho honesto (intelectual e moralmente) era apenas uma dentre as opções possíveis. E não se julgue, aqui chegados, que divago, que perdi, então ou agora, a noção da verdadeira escala do que tinha pela frente ou que, por outra, romantizo o assunto para ter matéria de escrita. Estou convencido que qualquer interacção interpessoal é uma interaçcão, antes de mais, de substrato moral, na medida em que, na antecâmara do que efectivamente dizemos ou escrevemos, está a intenção com que o fazemos. Por outras palavras, antes do rigor e elegância do que é dito, está o efeito que se busca, a consequência que se quer provocar, a imagem que se pretende construir, o ganho que se prevê obter. Isto é remeter para a verdade não enquanto estágio científico e filosófico, mas enquanto valor ético-moral. Esta visão do acto comunicacional não está vinculada a nenhuma das suas circunstâncias materiais ou históricas; pelo contrário, será talvez especialmente válida na mais inócua e residual das situações. Vale por si mesma, enquanto princípio.
Temos portanto um testemunho de três minutos, uma página A4, mais coisa menos coisa, destinado a um grupo fechado de nem vinte pessoas, testemunho oral, pessoal, despreocupado e presumivelmente inconsequente. Mas, na sua base (a montante), estará uma certa visão de mundo; no seu fim (a jusante), estará o território de afirmação e realização dessa mesma visão. E se parece certo que tal concepção da comunicação não está (ou não deve estar) vinculada a nenhuma das suas circunstâncias externas, nem por isso parece menos certo que, na prática, pode muito bem estar. E, em regra, está mesmo.
No meu caso particular, grandemente em função de uma certa postura perante as coisas a propósito da qual terei talvez que me reconhecer alguns méritos, nada ou quase nada tinha a partilhar que não fosse de satisfação e boa-onda. Isto teve certamente a sua importância na facilidade com que alinhavei o meu testemunho. Mas este dado interessa-me pelo seu inverso: como teria sido caso a globalidade da minha experiência fosse negativa? O discurso sair-me-ia igualmente desembaraçado e claro? Tocaria, como o fiz, todos os itens que me surgissem na mente? Adaptaria (amaciaria) o conteúdo, pelo menos de forma a dar uma no cravo, outra na ferradura? Manteria tudo tal e qual como escrevera na véspera, antes de estar em presença daquelas pessoas e naquela circunstância? Mais: antes de tudo isto, teria aceite o convite?
Se tudo isto tem o seu lugar numa circunstância de somenos importância e consequência, passada no manso recato de uma das dezenas de universidades da cidade, o que se dirá de uma ocasião solene, marcada pelo mais alto aparato institucional, em que estão presentes, enquanto altos-representantes dos órgãos de soberania, os protagonistas maiores da cena política actual e que todos os meios de comunicação nacionais, com esmerada exaustividade, registam e transmitem em directo? O discurso do 10 de Junho, por exemplo (por mero exemplo). Como seria se, no papel de presidente da comissão de celebrações da efeméride, subisse ao palanque para discursar? Francamente, não sei a resposta. Mas sei que a resposta a que João Miguel Tavares chegou e à qual deu corpo podia ter sido outra completamente diferente. Podia e, aliás, o expectável (o desejável, dirão alguns) é que fosse mesmo outra: outra temática, outra abordagem, outra mensagem, outro tudo. O discurso do 10 de Junho foi, anos a fio, um exercício mais ou menos gracioso de jogo-de-cintura à portuguesa: vago e protocolar, caridoso, generoso e cauteloso, com um olho nas conveniências e outro nas susceptibilidades, mas principalmente inofensivo e inconsequente, garante e participante do statu quo. O de João Miguel Tavares não foi nada disso. E não só não foi nada disso, como não se define por não o ter sido. Foi, isso sim, um discurso que, com razoabilidade, clareza e apreciável eficácia, se desenvencilhou do circunstancial e passageiro e almejou ao que tem um alcance civilizacional – como as noções de justiça, de comunidade e de futuro. Foi crítico em relação à classe dirigente, mas não a atacou, antes olhou por cima dela, para lá dela, remetendo-a para o seu lugar: o de uma dada circunstância histórica que teve um princípio e terá um fim. Foi ainda um discurso que pôs em cima da mesa um assunto que considero absolutamente fulcral na projecção de uma nova sociedade: o da responsabilidade individual. Este tema, que a narrativa do establishment, numa dinâmica perversa de auto-preservação, ignora, é tão exótico quanto estrutural. A sua ausência crónica, seja na forma de tópico de reflexão, seja nas formas de comportamento e convicção, configurar-se-á certamente como uma das falências-chave da sociedade portuguesa.
Do meu ponto de vista, João Miguel Tavares viu-se numa bifurcação: ou se deixava resvalar para o conforto morno das convenções e conveniências, piscando o olho a alguma vantagem pessoal que daí pudesse advir, mais não fosse no longo-prazo; ou, apesar de todos os pesares, apontava a um bem maior, desinteressado e atemporal, a um registo de potencial histórico. Optou, claramente, por este último.
É certo que um mês é tempo mais do que suficiente para que este discurso seja perfeitamente desvirtuado e neutralizado, ou simplesmente esquecido – e nem tanto pela imperfeição da tentativa, mas pelo cepticismo pseudo-informado que marca os nossos dias, pelo perfeito desinteresse popular em relação à coisa pública ou pelo puro desconhecimento de facto quanto ao que João Miguel Tavares teve a coragem de ler num 10 de Junho, em Portalegre, para Portugal inteiro ouvir. Saibamos, no mínimo, reconhecer-lhe esse mérito. Saibamos reconhecer que todos nós, no nosso dia-a-dia, temos a responsabilidade de, com honestidade e urbanidade, escolher a atitude certa, e saibamos, sobretudo, que, se o não fizermos, estaremos a perpetuar um mal que todos reconhecemos justamente como tal. Saibamos, enfim, seguir-lhe o exemplo – mesmo que se trate tão-só de uma anónima comunicação de três minutos.

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