Covid-19: questionar a proporcionalidade da reacção

Um inquérito recente da DECO calcula que cerca de 6 em cada 10 trabalhadores portugueses sofreu já o impacto da actual situação sócio-económica. Entre quem perdeu o emprego, viu o seu horário reduzido ou passou temporariamente à inactividade, o inquérito contabilizou 58% de respostas.

"Covid-19 prejudica 60% dos trabalhadores"
Confirmando-se a representatividade do inquérito, esta percentagem corresponderá, no universo total de trabalhadores portugueses (que a PORDATA calcula que eram, em 2019, pouco mais de 5,25 milhões), a mais de 3 milhões (!) de pessoas, o que diz bem da transversalidade e da escala dos problemas económicos causados pela gestão desta crise pandémica. Pois 3 milhões é agora o número de infectados... em todo o globo.
Olhando aos números do emprego e à tendência que esboçam (verificou-se já uma subida de quase 10% da taxa de desemprego), não será de espantar que o próximo mês mostre valores que expressam uma regressão aos números dos idos de 2008.
Estes dados, só por si, são quanto baste para se colocar um enorme ponto de interrogação na proporcionalidade do conjunto de medidas políticas até aqui tomadas, não apenas olhando às estatísticas gerais da doença, mas sobretudo face à gravidade das suas formas de manifestação. Mesmo considerando, como tão insistentemente se tem falado, que os números oficiais ficam aquém da realidade, como explicar um tão extraordinário, tão brutal quadro social de confinamento domiciliário? Mas porque estas decisões são, em última instância, decisões políticas, a resposta a tal questão estará sempre relacionada com a resposta a uma outra: como explicar uma tão neurótica, tão histérica recepção desta pandemia por parte da globalidade da população?
É talvez ingrato e certamente simplista dizer que 24,027 infectados e 928 óbitos não justificam, não podem justificar, mais de 3 milhões de trabalhadores afectados, quase 2/3 da capacidade produtiva nacional. Mas não há formas curtas de se colocar a questão que não passem, na aparência, pelo menos, ora por uma coisa, ora por outra.
O «caso português» é um sucesso na cena internacional. Fala-se de "milagre", inclusive (o que talvez diga mais sobre a concepção que lá por fora se faz do país do que da avaliação objectiva da forma como por cá se lidou com isto). Olhemos, então, aos "maus exemplos": Itália, Espanha, Reino Unido, França e EUA. Nos quatro primeiros, o número de óbitos associado à Covid-19 anda entre os 21 mil britânicos e os 27 mil italianos (sigo o quadro da Universidade Johns Hopkins). 


O caso espanhol é, porém, o mais gravoso na relação óbitos-população. Os 23 mil mortos de Espanha correspondem, números redondos, a 0,05% da população daquele país. À escala, uma dinâmica semelhante corresponderia em Portugal a cerca de 4700 vítimas mortais. Isto representaria, por sua vez, um número de óbitos superior em cerca de 30% àquele atribuído à gripe sazonal na época gripal de 2018/19 - que se fixou, segundo o Instituto Ricardo Jorge, nas 3331 (uma quebra, note-se, em relação à época homóloga do ano anterior, que contabilizara 3700 mortes). O pior dos casos conhecidos na Europa teria, portanto, de forma simples e linear, esta escala. Já o caso italiano, porventura o mais paradigmático de toda esta pandemia, transferido nos mesmos moldes para a realidade portuguesa, resultaria em aproximadamente 3770 mortes, em linha, grosso modo, com os números portugueses para a gripe comum e bastante abaixo das mortes por pneumonia - de que se conhecem os números consolidados para 2018, os quais apontam para mais de 5700 óbitos por esta causa (num total de 13,305 ligados a doenças respiratórias).


Finalmente, quanto ao caso norte-americano, dizer que os actuais 55,600 óbitos representam menos de 0,02% da população daquela federação, proporcionalmente metade do caso italiano.

Mais significativa que os números de infectados confirmados e de óbitos é, contudo, a expressão prática da doença. A larguíssima maioria dos infectados tem manifestações ligeiras, perfeitamente tratáveis no domicílio. Isso mesmo é dito frequentemente pelas autoridades de Saúde e está plasmado em todas as estatísticas disponíveis. A evolução no tempo desta pandemia não alterou esta realidade. Este facto não pode ser desvalorizado, mesmo face ao elevado nível de contágio deste vírus.
Por outro lado, importa talvez ter em mente outros factores, muito mais terra-a-terra que o advento de um obscuro vírus que veio da outra ponta do Mundo. Um exemplo: a dimensão urbana da doença. Isso mesmo fica na retina quando se olha o mapa da distribuição de casos em Portugal.


Veja-se, já agora, o caso algarvio. A escassez de casos (pouco mais de 300 infectados num universo de 450 mil habitantes) contrasta brutalmente com o impacto económico que ali se sente: calcula-se em bem mais de 40% (!) o aumento do desemprego na região no seguimento das medidas de combate a este corona-vírus, o que se torna ainda mais gravoso pela época do ano em que tal se verifica.
Mas sobre a dimensão urbana da doença, um mesmo quadro de distribuição se observa em todos os países afectados, ao nível regional, e no globo, ao nível nacional - sublinhe-se que 80% dos infectados mundiais se dividem actualmente entre Europa e EUA. Só uma visão etnocêntrica (aos vários níveis) pode ignorar quão concentrada, quão localizada é a manifestação da Covid-19. Estes dados deve levar-nos a considerar os factores ambientais, sócio-económicos e do próprio estilo de vida (hábitos alimentares e dietas, qualidade do descanso, stress e pressão psicossocial, etc.) próprios das cidades e dos meios urbanizados. A questão da qualidade do ar é, desde logo, um factor-chave.
O elemento «cidade» tem igualmente uma dimensão fenomenológica naquilo que é a já aludida forma de recepção que esta pandemia tem conhecido por parte da generalidade da população, talvez a face mais bizarra da presente circunstância histórica. Isto envolve um conjunto notável de mitos instantâneos e de comportamentos públicos de um perfeito ridículo. Como me dizia aqui há dias a pessoa sobre todas especial, esta doença "não está a ser enfrentada como uma doença". Mas sobre isso falaremos noutra altura.


Em suma: pondo na balança o máximo número de variáveis possível (deixámos de fora algumas notas que talvez seja conveniente recuperar no futuro), é cada vez mais difícil aceitar e mesmo compreender a resposta dada a esta crise.

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Todo este complicado e aritmético arrazoado tem apenas este intuito: colocar a questão sobre a proporcionalidade de tudo quanto se tem decidido, se tem feito e se tem dito relativamente à Covid-19. Nada do aqui vai traduz uma visão do tipo "isto é só mais uma gripe" ou algo que, dalgum modo, desvalorize a seriedade desta pandemia e, sobretudo, a enorme complexidade de toda a situação. A imprevisibilidade evolutiva de um fenómeno que se caracteriza justamente pelo seu potencial de crescimento exponencial torna dificílimo (senão impossível) encontrar o ponto de equilíbrio exacto em qualquer processo de decisão. Os números aqui compilados são um mero exercício que pretende colocar alguma ordem na inabarcável confusão que tem sido tudo isto e um esforço honesto por tentar compreender qual a dimensão verdadeira desta crise e desta doença. Sem melodramatismos «a la rede social», é, bem entendido, a nossa vida que está em jogo.
Num tempo marcado por uma ordem social re-fundada no distanciamento social, levar a cabo uma reflexão assente no distanciamento crítico não pode ser visto como acto de lesa-pátria. Predominam os unanimismos vários e uma emotividade profundamente maniqueísta. Nada de novo, portanto; apenas está tudo muito mais assanhado. Mas sentir a necessidade de terminar com uma espécie de disclaimer (para memória futura, mais não seja) diz bem da dimensão social desta discussão. Apercebi-me há dias como este assunto pode ser fracturante e como - falando em proporção - importa ter presente a hierarquia geral das coisas: uma visão divergente sobre um dado assunto não pode fazer sombra a amizades ou relações familiares.

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