Vai Ficar Tudo Bem

Imaginemos um indivíduo que acabou de regressar de um retiro espiritual algures no Kalahari. Ali passou os últimos 45 dias, sem qualquer contacto com o exterior. O sujeito chama-se Jorge Arbusto e, tendo tão-somente ido a casa pousar as bagagens, foi ao supermercado ao pé de casa comprar alguns víveres.
Jorge ficou muito chocado com o que foi testemunhando, no caminho, nas ruas da sua vila: os restaurantes, cafés e lojas de rua encerrados, os passeios praticamente sem gente e com um número surpreendente de luvas de borracha e máscaras hospitalares espalhadas pelo chão, as estradas com pouquíssimo tráfego, tudo quanto era banco de jardim ou equipamento público exterior vedado por fitas da Polícia Municipal e da Protecção Civil, uma inusitada presença de agentes e viaturas da GNR em patrulha - veria mesmo uma delas a circular lentamente junto a uns prédios e a emitir um aviso pelos altifalantes do tejadilho e, mais à frente, um drone a sobrevoar uma praceta - e um sem-fim de reclames publicitários e avisos institucionais contendo, em letras garrafais, uma de duas coisas: Fique Em Casa ou Vai Ficar Tudo Bem.
O seu choque não diminuiu quando chegou ao supermercado. Uma vasta área do estacionamento junto da entrada principal estava sem carros, como que isolada por fitas brancas e vermelhas. Viam-se, sob um dos toldos do parque de estacionamento, ocupando talvez oito lugares, quatro cadeiras de esplanada, dispostas lado a lado e bem afastadas umas das outras, viradas para a fachada do edifício, vazias. Um letreiro explicava que cada cliente devia tirar uma senha e aguardar a sua vez. Apelava-se gravemente ao distanciamento social. Em volta, espalhados um pouco por toda aquela área, voltados para a entrada, viam-se alguns homens sozinhos e dois ou três casais, todos de máscara posta e braços cruzados, aguardando. Ainda processava tudo aquilo quando uma voz berrou um número - Noventa e Sete. Nove, Sete. Noventa e Sete. Virou-se, era o segurança. De megafone numa mão e bloco de apontamentos noutra, ia chamando pelos números das senhas. As pessoas iam entrando, a conta-gotas. Ali ficou Jorge, aguardando também, debaixo de um ameaçador céu de chumbo. Quando finalmente chegou a sua vez e entrou, o que encontrou lá dentro era igualmente inédito: as lojitas fronteiras à linha de caixas do supermercado estavam também encerradas; à entrada, toda ela confinada por mais fitas e letreiros, havia um dispensador automático do que parecia ser um desinfectante alcoólico; as caixas tinham em torno uns acrílicos de grandes dimensões, que fechavam, como num aquário rectangular, os funcionários, que se apresentavam ora com a já vista máscara azul, ora com uma grande viseira que lhes tapava todo o rosto; viam-se, aqui e ali, faixas autocolantes vermelhas no chão; e todos os clientes, sem excepção, usavam máscara. Muitos estavam também munidos de luvas descartáveis. Ao passarem por Jorge, apressados e tensos, descreviam curvas algo ilógicas com o claro intuito de tentar resguardar a maior distância possível; outros miravam-no, entre assustados e reprovadores. Para pesar a fruta e os legumes, Jorge aguardou que a funcionária, também ela dentro de um aparato de acrílicos, lhe recolhesse os sacos por um buraco próprio naquela estrutura e que lhos devolvesse, já com a etiqueta com o preço, por um outro, mais à frente. Faixas vermelhas no chão mantiveram-no, durante a pesagem, bem no meio do corredor, a mais de um metro daquelas paredes transparentes. Quando, finalmente, Jorge pegou nas suas compras já pagas (foi ele que, a um sinal do indicador do funcionário, colocou o cartão multibanco no aparelho estrategicamente posicionado fora da estrutura de acrílico) e iniciou o regresso a casa, uma pergunta dominava-o: que raio se passa?
Para se esclarecer, Jorge (naturalmente) entrou em contacto connosco. Transcrevemos em seguida a conversa. Importa talvez acrescentar que o Jorge reside presentemente em Mafra.

Jorge: Que raio se passa? Vim agora do supermercado e não vão acreditar no que testemunhei.
Plural Majestático: Vamos, sim. Nós não estivemos num retiro no deserto durante o último mês e meio.
J: Ok, era só uma força de expressão. Mas digam-me, que raio se passa?
PM: Há um novo vírus que provoca uma nova doença chamada Covid-19. É uma doença respiratória e já foi declarada como pandemia a nível mundial. Por cá, o Presidente da República já decretou o Estado de Emergência nacional por três vezes.
J: Apre! O que havia de acontecer! Então e há muitos casos aqui em Mafra?
PM: Já foram confirmados noventa e seis casos.
J: Noventa e seis?
PM: No concelho todo. Na freguesia de Mafra são vinte e três.
J: Vinte e três?
PM: Sim. Sendo que, desses, sete estão já dados como recuperados.
J: Mas... a doença é muito letal?
PM: A taxa estimada de letalidade é de aproximadamente 4%.
J: 4%?
PM: Sim.
J: Mas a doença é dolorosa ou incapacitante?
PM: Em regra, a Covid-19 tem manifestações ligeiras a moderadas. Calcula-se até que uma parte dos infectados nem chega a manifestar sintomas.
J: Então e nada de cuidados hospitalares, internamento e isso?
PM: À data de hoje, os doentes em internamento hospitalar representam 3,99% de todos os infectados.
J: 3,99%? Mas estão nos Intensivos?
PM: Só uma parte, felizmente. Os doentes em Cuidados Intensivos representam mais ou menos 0,7% de todos os infectados.
J: Bom, melhor assim. Mas então porque é que está tudo fechado? Tenho a TV ligada e vejo que as escolas estão encerradas, as praias interditas, as competições desportivas suspensas e que, com tudo isto, a Economia está em cheque. Ao que ouço, dois-terços de todos os trabalhadores em Portugal já foram afectados no seu emprego.
PM: Bom, é preciso conter o contágio.
J: Certo. Mas isto é um bocado exagerado, não?
PM: Não podemos facilitar.
J: Mas não há alternativa?
PM: Medidas semelhantes foram tomadas um pouco por todo o Mundo.
J: Isso não responde bem ao que perguntei, acho eu.
PM: Estás a ficar chato.
J: Vejo que se discute já o recurso ao controlo de pessoas por geolocalização! Como é que chegámos aqui?
PM: Jorge, sabemos que acabaste de chegar, mas mentaliza-te disto: Nada Será Como Dantes.
J: Irra! Mas que raio se passa?
PM: Jorge...
J: Sim?
PM: Não desanimes, ok? Vai Ficar Tudo Bem.

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