In nomine Salutem

De volta a casa, de volta ao "teletrabalho". Devia estar animado. Afinal de contas, o teletrabalho é excelente. Mas sinto-me meio anestesiado. Tudo isto me perturba profundamente. Aquilo a que assisti nos últimos dois ou três dias no escritório afectou-me. É confuso e é difícil distinguir os momentos e os gestos. De resto, nada disto é novo ou é especialmente estranho e foi tudo (a meu ver, pelo menos) extraordinariamente rápido. Fica-me a impressão de uma onda silenciosa. Como uma onda, não a podemos parar e só aparentemente sabemos donde ela vem e onde vai rebentar. Foi ela que nos trouxe de volta a casa. Para já, foi aqui que nos trouxe. O desejo de voltar ao teletrabalho era expresso e várias vezes falado. Ei-lo tornado realidade. Tudo em nome da protecção da Saúde de todos e de cada um. In nomine Salutem. Um colega testou "positivo" na segunda-feira. Seguiram-se-lhe mais dois, dentre um grupo mais alargado de colegas que, por algum critério que me escapou, se submeteu a testes. O terceiro, conhecido ontem, foi, aparentemente, o momento-charneira: "antes" que estivéssemos perante um "surto", avançou-se com a medida - "sensata", dizia-se por lá, junto com um acenar grave da cabeça - de virmos todos, numa debandada súbita e precipitada, para casa. Por ora, durante uma semana. Depois "reavalia-se". Seja como for, como me explicaram, espera-se que o Governo anuncie "alguma coisa" amanhã, depois de reunir com os "peritos". Este regresso a casa é-me, além de agradável, conveniente. Mas nada disto bate certo. Nem a acção, nem o timing, muito menos os motivos. Não perderei tempo a debater-me com as palavras para (tentar) desconstruir cada um destes itens. Simplesmente, este tipo de dinâmica afigura-se-me perigosa. Isto mesmo: perigosa. Quis-se voltar ao teletrabalho. Voltou-se. A pandemia foi o pretexto apenas, pelo menos até certo ponto. Senti uma dramatização mal disfarçada da situação. Isso mesmo me ficou cristalino quando, anunciada a decisão de virmos para casa, como por magia, o ambiente se desanuviou. Os corpos, até ali meio encolhidos, expandiram-se. Os semblantes, até ali abatidos, tornaram-se joviais. Viveram-se, enquanto se arrumava tudo, momentos de incontida felicidade infantil. Posso estar a ser injusto, mas foi esta a impressão que me ficou gravada. E se ali, naquele microcosmos, foi isto que se viveu e se conseguiu, pergunto-me quantas destas pequenas realizações existirão por esse país fora, quanto desta crise pandémica é o somatório destas pequenas dinâmicas de dramatização, quanto desta crise é afinal a materialização de um aparato de medo ilegítimo e hipócrita.

Actualização (22/11/2021): houve já, fiquei entretanto a saber, um sentido e hilário "obrigado" àquela terceira colega que apresentou um teste positivo ao novo coronavírus. "Se fossem só dois, não viríamos para casa". Uma salva de palmas.

Mensagens populares deste blogue

Algo de errado se passa.

Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem

Os números COVID-19: ou latos em excesso, ou inconsistentes, ou pouco consolidados