Sobre o referendo de 11/2


Há certamente muito a dizer sobre o referendo do próximo mês. Em primeiro, parece-me importante vincar bem a ideia de que vai a votos a despenalização da prática do aborto, e não a temática do aborto, em geral (patente na pergunta corriqueira por ocasião dalguma troca de palavras acerca do referendo “Tu concordas com o aborto?”) ou a sua liberalização – e há quem aponte que a pergunta que vai a referendar está mal formulada, que se refere mais a liberalização que a despenalização – levanta-se o véu da suspeita de que todo este alarido será mais areia para os olhos que um verdadeiro levantamento popular?
Em segundo, ocorre-me dizer que subjaz ao referendum de 11/2 um mal (eventualmente) menor: ou Sim ou (no caso, não se tratam de sopas) Não. Ou se está a favor ou se está contra. Ou se está connosco ou se está contra nós. Ou se escolhem o modernismo e a liberdade ou se escolhem os pensamentos retrógrados e sexistas. Ou a libertinagem, a desresponsabilização, ou a prevenção, os valores cristãos. Enfim, parece-me que é fundamental que, para que surjam uma discussão frutífera, uma decisão ponderada, uma posição genuína – que deve ser afastado este ponto de partida afectado de haver a necessidade de alinhamento com uma ou outra facção.
Assim, vejo alguns argumentos de parte-a-parte que são, segundo o meu critério, bastante válidos. A ver, para o Não: i) quando começa realmente a vida? Apartando-me de dogmas religiosos, o que é facto é que todo o material genético (não sei se esta será terminologia apropriada...) necessário à vida já se encontra no feto desde a primeira semana; mais, é impossível dizer quando, efectivamente, começa a vida – que critérios se usam? Há os que dizem que a vida humana começa com o desenvolvimento do cérebro, os que afirmam que a vida começa com a formação do coração, os que defendem que assim que ocorre fecundação se inicia o novo processo vital, e por aí adiante. Ora, todas são posições lógicas, válidas, defensáveis. É incontestável este valor de 10 semanas?; ii) e o nosso deplorável Serviço Nacional de Saúde? Como ficará, pobre coitado? Ultra-sobrecarregado, ultra-desorganizado, ultra-desorientado, pior ficará, provavelmente, se às infindáveis listas de espera para intervenções cirúrgicas e demais consultas se juntarem os casos de relativa urgência, que vão ter que ter prioridade, não vá acontecer que passem as 10 semanas!, de intervenções abortivas – como será, então? E será que já foi suficientemente previsto – se é que já alguém falou sequer nessa questão – o modo como se irão processar os financiamentos, as comparticipações, e por aí fora, relativos à prática do aborto em centros de saúde e hospitais públicos? Além do mais, de certa maneira, tornar-se-á legítimo, nalguns casos particulares, colocar a questão do seguinte modo: “Andamos nós todos a pagar os descuidos duns poucos?”; iii) E não serão as situações já previstas e contempladas na lei suficientes e adequadas para evitar eventuais injustiças, possíveis filhos indesejados ou prováveis mortes e deficiências incapacitantes à vida de mãe e filho e do casal e restante família?
Pois muito bem. E quanto ao Sim? i) a liberdade individual e o direito de opção devem ser gradualmente aumentados – o Governo e a lei devem, progressivamente, cercear menos a escolha pessoal dos cidadãos portugueses; ii) em anexo a i), é de dizer que não faz sentido ter procedimentos criminalizantes num assunto que deve responder somente ao critério pessoal dos intervenientes; iii) os abortos acontecem, e a uma taxa surpreendentemente alta entre as mulheres portuguesas. Ora em Espanha, legalmente mas com custos acrescidos, ora em clínicas com especialidade de ginecologia no nosso território, ilegalmente mas com custos mais moderados, ora por outros meios – muitas mulheres portuguesas admitem (de acordo com alguns estudos recentemente publicados) já ter recorrido a essa intervenção – e não importam os motivos, nem sequer a sua legitimidade ou o seu fundamento. Posto isto, não seria melhor legalizar essa realidade, proporcionando um serviço apropriado às mulheres que tomam essa (penosa?) decisão?
Outros pontos há a ter em consideração. Digamos, ambiguidades do referendo próximo. Em primeiro lugar, talvez menos importante, porque menos exacto e menos defensável – os votantes d´agora são, grosso modo, os mesmos de 1998. Os nove anos que separam os dois referendos não me parecem significativos no que toca à mudança de posição dos eleitores e consequente pertinência de nova consulta. Mas enfim, isso pode, inclusivamente, ser usado ao contrário.
Em segundo, que dizer dos alvarás (alvarazes?) de construção concedidos no último trimestre do ano passado a clínicas espanholas que fazem abortos? Num negócio, o risco de fracasso tem presença garantida, mas, para tomar a decisão final, para determinar que se deve investir e ir para o terreno, esse risco tem que estar bem calculado. Porque decidiram então, antes até de alguma sondagem credível, procurar fixação no nosso território?
Três: tal como o de 1998, este referendo poderá não ser vinculativo – o que, olhando para o historial de participação às urnas dos portugueses, é (infelizmente) muito provável. Só será vinculativo se 50% dos recenseados votarem – em 1997, PS e PSD assim o decidiram (a acreditar nalguns especialistas), em defesa da “legitimidade” do acto. Devo dizer que concordo plenamente com esta ideia de ilegitimidade quando só 30 e muitos % dos cidadãos contribuiram com o seu voto, como é nosso costume, pois se os resultados não se referem nem a metade dos eleitores, que representatividade poderão ter? Isto não são meros exercícios estatísticos que funcionam por amostras – ainda. Mesmo tendo em conta que o número de recenseados (obrigatórios) poderá induzir em erro no que toca ao número real total de votantes e, por conseguinte, na definição dos tais 50%, esse eventual erro nunca ultrapassará, calcula-se, os 5%. Assim, parece-me a mim que uma das ideias que importa subtrair deste tal interesse pela “legitimidade” dos números demonstrado pelos nossos trintenários carrascos PS e PSD – passa pela incoerência de não aplicar esse critério aos demais actos eleitorais. Existirá algum interesse nublado no plausível aproveitamento político de toda esta movimentação em redor do referendo, pois, eventualmente, nem irá ser vinculativo? A juntar à dúvida relativa à pergunta do referendo e à dita reformulação de 1997, outros factores e acontecimentos convergem tenuemente para a ideia de que tem havido efectivamente um aproveitamento político, calculado e controlado, deste debate e desta actividade, de forma a que tudo isto sirva de diversão estratégica que vai permitindo que outras coisas vão sendo feitas na sombra. Mas prefiro não entrar por conjecções conspirativas – falta-me por vezes a certeza da sua utilidade.
Feitas estas considerações, parece-me pertinente referir que a campanha para o referendo custará ao erário público a módica quantia de 10 milhões de euros. E uma coisa mais: consultando no dicionário a palavra “referendo”, pode-se ler “(...) direito que em alguns países assiste aos cidadãos de se pronunciarem sobre certos assuntos de grande interesse nacional ou local (...)” (o itálico é meu). Agora pergunto: o objecto do presente referendo é de grande interesse nacional? Como coisa rara no nosso país – é apenas o terceiro – não faria mais sentido referendar outros assuntos, esses sim de grande interesse nacional, que foram e vão continuar a ser decididos na AR – como a liberalização dos combustíveis e do fornecimento de água, a participação militar em certos conflitos armados, entre outros?
Bem, por aqui me fico. Espero que este curto escrito seja dalgum modo útil para uma saudável e profícua discussão e posterior tomada de posição. Que sirva para responder mais conscientemente à pergunta:

“Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”

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