Hemorróidas vipes
(Queijas, numa manhã de uma quinta-feira de uma semana de um mês de um ano.)
1 A pastelaria ampla e airosa, meio cheia meio vazia, um murmurar de pires e colheres, um tilintar de homens e mulheres. O sol nublado, de cauda de grilo amarela acinzentada, era o maestro da sinfonia da cor da sala. O galão quente e o livro aberto bailavam impudentemente à minha frente.
Mas eis que!
Entra o vipe:
Munt´ importantão,
Num Eis-me enfim chegado!
Saudando a plebe c´ um gesto da mão.
Os gestos largos,
A voz grossa,
A barba farta,
A solene e feia pança de morsa.
Os olhos piscos
A lamber a situação
À cata de cuscos
Que lhe passassem cartão.
D´ um trago, aspirou o café e a nata. Sem delongas, os olhos fizeram que liam as manchetes do matutino que jazia junto aos restos mortais do pastel. Depois, num ápice, içou o corpo flácido com ares de atarefado.
E então:
Sai o vipe
Num sonoro tropel de banhas,
Meneando as horrendas nalgas,
Despedindo-se c´ um aceno das gadanhas.
Breves momentos passados, a normalidade retomada, a pachorrenta toada de pastelaria, pires e colheres, velhos e mulheres, o sol ainda de fraque encoberto, os pombos anafados a defecar do alto do rebordo da janela num concurso de poias de esguicho, uma bicha de clientes ordeiramente alinhada em frente da caixa registadora, o televisor a zumbir estupidamente.
E nisto:
No lugar vagado
P´ la suma rabadilha,
Aconchega-se uma senhora
Sem fama ou cartilha.
Num salto, porém,
Larga a senhora a cadeira visada:
Está quente, murmura,
E, como mulher avisada,
Trocou de morada,
Que de cadeira esquentada
Há que fugir sem mais nada!
Na dita empreitada,
C´ a voz alterada,
Não foi de modas,
Largou consternada,
Isto é hemorróidas!
Ouvindo tudo isto
E topando a tourada,
Um bigode vizinho
Farpou a insigne lombada,
Mas vipes, minha senhora,
Hemorróidas vipes!
2 Porquê uma agência de viagens?, cuspiu-me ele a um palmo da cara, pergunta e bafo tudo à mistura, e uma insistência superior no olhar à laia de polícia num interrogatório, e eu, na pontinha da cadeira, a vê-lo a contraluz como um criminoso vê o polícia num interrogatório, com a cabeça ainda na pastelaria e no vipe, desconfortável no meio daqueles placares cor-de-rosa empestados de mares de veludo, areias de oiro e meninas de bronze, balbuciei aos repelões Bom, o sistema turístico global, que engloba as agências, entre outras coisas, não é verdade, enfim, nos últimos tempos, aliás, nos últimos anos tem crescido e, bom, dentro desse sistema global as agências de viagens têm protagonizado um crescimento assinalável, eh, em termos de lucros e dispersão de agências, dispersão geográfica, claro, e, por isso, eu, Ah, desculpe, tenho de atender o telefone, interrompeu-me ele com a palma da mão virada.
Porra, pensei eu enquanto o fulano enfiava o bocal do telefone pelos beiços dentro e roncava baixinho num portunhol de segunda, Que paleio de merda que me fui lembrar, ò caraças, o melhor é virar o bico ao prego, assim que o gajo largar lá a operadora espanhola digo-lhe que vim cá foi pelo contacto com o público, é isso mesmo, o público, Desculpe lá, André, mas não podia deixar de atender, mas continuando, Sim, comecei eu revitalizado, Ia dizer que, em primeiro lugar, acima talvez do que já disse anteriormente, o que me fez candidatar a uma agência de viagens foi a possibilidade de contactar directamente com o público, e, Estou a ver, estou a ver, cortou ele com uma repentina sombra nos olhos, feito detective de bigode arrebitado a amassar o cigarro apagado no cinzeiro cheio num dramático anúncio do crime desvendado, da culpa descoberta, e eu, tendo sido tolhido precisamente quando começava a sentir-me no caminho certo para mentir com alguma lógica e desembaraço, tal e qual um suspeito de cabelo desalinhado perante um detective de gabardina bege a denunciar todo a culpa no cartório pela testa perlada de gotículas de suor.
Bom, começou ele, Gostava de lhe deixar claro que, e foi um nunca mais acabar de enormidades empregadoras. Que queria um compromisso desde logo para o pós-estágio, Note que depois de terminado este estágio a remuneração vai baixar consideravelmente, É um jovem, tem disponibilidade de horários, certamente, e coisas do mesmo calibre, emparelhadas com chavões como É fundamental vestir a camisola, O mais importante é o capital humano ou Pretendemos fazer um investimento na sua formação, e tudo como se desenrolasse um novelo puxando a ponta do fiozito com coerência e saber, sem sequer piscar os olhos ou trocar as mãos.
Muito bem, miei eu vagamente quando o sujeito fechou finalmente a matraca, enquanto pensava Eu aqui a gaguejar para dar uma tangazita de caracacá e este boi com uma lata bruta a engodar-me com um à-vontade desconcertante e a mentir com os dentinhos todos que ainda lhe restam. Então pronto, mugiu a besta, Hoje entrevistarei mais três candidatos e mais logo, ainda hoje, dir-lhe-ei qualquer coisa, para que saiba se fica ou se não fica, e isto tudo enquanto no interior do seu bovino crânio ruminava algo do género de Deves ficar tu, deves, só se os outros três putos forem ainda mais ruinzinhos que tu, ao que eu volvi, sorridente, Sim, senhor, muito obrigado e bom dia, enquanto pensava Vim até Queijas só para gastar dinheiro, raios partam esta gaita toda.
Mas eis que!
Entra o vipe:
Munt´ importantão,
Num Eis-me enfim chegado!
Saudando a plebe c´ um gesto da mão.
Os gestos largos,
A voz grossa,
A barba farta,
A solene e feia pança de morsa.
Os olhos piscos
A lamber a situação
À cata de cuscos
Que lhe passassem cartão.
D´ um trago, aspirou o café e a nata. Sem delongas, os olhos fizeram que liam as manchetes do matutino que jazia junto aos restos mortais do pastel. Depois, num ápice, içou o corpo flácido com ares de atarefado.
E então:
Sai o vipe
Num sonoro tropel de banhas,
Meneando as horrendas nalgas,
Despedindo-se c´ um aceno das gadanhas.
Breves momentos passados, a normalidade retomada, a pachorrenta toada de pastelaria, pires e colheres, velhos e mulheres, o sol ainda de fraque encoberto, os pombos anafados a defecar do alto do rebordo da janela num concurso de poias de esguicho, uma bicha de clientes ordeiramente alinhada em frente da caixa registadora, o televisor a zumbir estupidamente.
E nisto:
No lugar vagado
P´ la suma rabadilha,
Aconchega-se uma senhora
Sem fama ou cartilha.
Num salto, porém,
Larga a senhora a cadeira visada:
Está quente, murmura,
E, como mulher avisada,
Trocou de morada,
Que de cadeira esquentada
Há que fugir sem mais nada!
Na dita empreitada,
C´ a voz alterada,
Não foi de modas,
Largou consternada,
Isto é hemorróidas!
Ouvindo tudo isto
E topando a tourada,
Um bigode vizinho
Farpou a insigne lombada,
Mas vipes, minha senhora,
Hemorróidas vipes!
2 Porquê uma agência de viagens?, cuspiu-me ele a um palmo da cara, pergunta e bafo tudo à mistura, e uma insistência superior no olhar à laia de polícia num interrogatório, e eu, na pontinha da cadeira, a vê-lo a contraluz como um criminoso vê o polícia num interrogatório, com a cabeça ainda na pastelaria e no vipe, desconfortável no meio daqueles placares cor-de-rosa empestados de mares de veludo, areias de oiro e meninas de bronze, balbuciei aos repelões Bom, o sistema turístico global, que engloba as agências, entre outras coisas, não é verdade, enfim, nos últimos tempos, aliás, nos últimos anos tem crescido e, bom, dentro desse sistema global as agências de viagens têm protagonizado um crescimento assinalável, eh, em termos de lucros e dispersão de agências, dispersão geográfica, claro, e, por isso, eu, Ah, desculpe, tenho de atender o telefone, interrompeu-me ele com a palma da mão virada.
Porra, pensei eu enquanto o fulano enfiava o bocal do telefone pelos beiços dentro e roncava baixinho num portunhol de segunda, Que paleio de merda que me fui lembrar, ò caraças, o melhor é virar o bico ao prego, assim que o gajo largar lá a operadora espanhola digo-lhe que vim cá foi pelo contacto com o público, é isso mesmo, o público, Desculpe lá, André, mas não podia deixar de atender, mas continuando, Sim, comecei eu revitalizado, Ia dizer que, em primeiro lugar, acima talvez do que já disse anteriormente, o que me fez candidatar a uma agência de viagens foi a possibilidade de contactar directamente com o público, e, Estou a ver, estou a ver, cortou ele com uma repentina sombra nos olhos, feito detective de bigode arrebitado a amassar o cigarro apagado no cinzeiro cheio num dramático anúncio do crime desvendado, da culpa descoberta, e eu, tendo sido tolhido precisamente quando começava a sentir-me no caminho certo para mentir com alguma lógica e desembaraço, tal e qual um suspeito de cabelo desalinhado perante um detective de gabardina bege a denunciar todo a culpa no cartório pela testa perlada de gotículas de suor.
Bom, começou ele, Gostava de lhe deixar claro que, e foi um nunca mais acabar de enormidades empregadoras. Que queria um compromisso desde logo para o pós-estágio, Note que depois de terminado este estágio a remuneração vai baixar consideravelmente, É um jovem, tem disponibilidade de horários, certamente, e coisas do mesmo calibre, emparelhadas com chavões como É fundamental vestir a camisola, O mais importante é o capital humano ou Pretendemos fazer um investimento na sua formação, e tudo como se desenrolasse um novelo puxando a ponta do fiozito com coerência e saber, sem sequer piscar os olhos ou trocar as mãos.
Muito bem, miei eu vagamente quando o sujeito fechou finalmente a matraca, enquanto pensava Eu aqui a gaguejar para dar uma tangazita de caracacá e este boi com uma lata bruta a engodar-me com um à-vontade desconcertante e a mentir com os dentinhos todos que ainda lhe restam. Então pronto, mugiu a besta, Hoje entrevistarei mais três candidatos e mais logo, ainda hoje, dir-lhe-ei qualquer coisa, para que saiba se fica ou se não fica, e isto tudo enquanto no interior do seu bovino crânio ruminava algo do género de Deves ficar tu, deves, só se os outros três putos forem ainda mais ruinzinhos que tu, ao que eu volvi, sorridente, Sim, senhor, muito obrigado e bom dia, enquanto pensava Vim até Queijas só para gastar dinheiro, raios partam esta gaita toda.
