Uivando

Quando foi morto, nas linhas finais do Ensaio, o cão uivava.
Uivaria ele de tristeza? de revolta? de raiva? quem nos poderia responder senão o próprio, que, não bastasse ter sido morto, nunca existiu. O que o cão - que, aos nossos ouvidos cegos, não fala - disse à restante matilha que se fizesse não foi uivo por mero acaso. O uivo é som longo, arripiante. Uiva-se de olhos cerrados, de boca apontada ao alto. Além do mais poético, serve para reunir a matilha e outros semelhantes cães, e parece trazer sempre uma nota de inominável desgosto e um sub-tom de invencível resignação. Uivemos, e façamos disso a obra que nos eternizará, parece dizer-me o ensaísta - seja por o querer ouvir, seja por de facto mo estar ele dizendo. Quem sabe, respondo-lhe, pegando no caso que nos conta, não engendraremos um meio de evitar em tempos futuros os derradeiros tiros, até aos quais a esperança imperava. Mas, enfim, se era de esperança que se tratava, o fado estava traçado, pois ainda que sendo, de todas, a última, acabaria sempre por, como aconteceu, morrer - isto disse-o o triste sorriso que, calados, ambos esboçámos. Uivemos, ainda assim, intervém a Fé a fazer-se passar por Esperança, ao menos assim traremos grandeza à morte, que não passa muito longe de dizer valor à vida. Note-se, relendo, a abissal diferença entre dizer, como aconteceu, Traremos e dizer, como não aconteceu, Trazemos. Mais, atente-se à propriedade de usar um e outro tempo verbal, pois se, com aquele, o diapasão é o do rigor factual, com este, o mote é o da crença ilusória, ou motivacional, conforme se queira. Daí, quiçá, o uivo. E não, por exemplo, o grito. Uivemos, e com esse uivo nos salvemos, cientes contudo de que o uivo por excelência está votado ao insucesso, esse fim que, parecendo mau, é o melhor dos fins.

Mensagens populares deste blogue

Algo de errado se passa.

Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem

Os números COVID-19: ou latos em excesso, ou inconsistentes, ou pouco consolidados