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O enterro de Saramago

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Morreu Saramago e logo toda a sorte de figuras públicas se condói e se verga perante o "génio literário" que "deixou o país órfão". Mostram-se sérios quando o fazem. Mostram-se também com pressa. Não sei se por trás deste movimento existe uma vontade consciente, mas este desfile de frases convencionais reescreve (ainda o homem não foi a enterrar) a História. Uma declaração de pesar, nesta altura, coloca o declarante ao lado do defunto escritor. Agora que morreu, Saramago já não é comunista, deixou de ser ateu e, o que é mais notável, retornou até à pátria. Tudo fica bem quando alguém morre. Em termos de respeito e consideração populares, morrer foi de longe a melhor coisa que podia ter acontecido a José Saramago.

Das conversas de café

Um grupo de rapazes conversava animadamente num café, já noite avançada. Em cima da mesa, a par de chávenas de café e copos de imperial vazios, estava o estado do Estado. Os vivas e os morras circulavam generosamente, bem como as causas maiores e as soluções totais. A certa altura, quando já o cansaço da repetição (amiúde se debatia o assunto) e a cerveja amoleciam o grupo, um dos rapazes, que até ali permanecera menos interventivo, tirou do bornal um livro, folheou-o num instante em busca duma página e, tendo encontrado o que procurava, começou a ler em voz alta *: "Aqui há anos, o Ricardo médico, muito a sério, influenciado pelo estilo e eficácia das operações de comandos, jurava que meia dúzia de homens, uns dez no máximo, bem treinados, podiam assaltar ali S. Bento, rajada aqui, bomba acolá, facada além, e num ápice raptar o Salazar [era ainda tempo dele], acabar com o fascismo, salvar o país, em suma." Todos em redor ouviam atentamente. E ele seguia lendo, impávido: ...

Uivando

Quando foi morto, nas linhas finais do Ensaio, o cão uivava. Uivaria ele de tristeza? de revolta? de raiva? quem nos poderia responder senão o próprio, que, não bastasse ter sido morto, nunca existiu. O que o cão - que, aos nossos ouvidos cegos, não fala - disse à restante matilha que se fizesse não foi uivo por mero acaso. O uivo é som longo, arripiante. Uiva-se de olhos cerrados, de boca apontada ao alto. Além do mais poético, serve para reunir a matilha e outros semelhantes cães, e parece trazer sempre uma nota de inominável desgosto e um sub-tom de invencível resignação. Uivemos, e façamos disso a obra que nos eternizará, parece dizer-me o ensaísta - seja por o querer ouvir, seja por de facto mo estar ele dizendo. Quem sabe, respondo-lhe, pegando no caso que nos conta, não engendraremos um meio de evitar em tempos futuros os derradeiros tiros, até aos quais a esperança imperava. Mas, enfim, se era de esperança que se tratava, o fado estava traçado, pois ainda que sendo, de todas, a...

Exercícios de escrita: saramaguices.

Emborco mais um gole de chá de camomila, esse que tem fama de ser bom para estômago e intestinos, antecâmaras sequenciais e preparatórias da evacuação da merda propriamente dita, que, quer-me parecer, será a pensar nisso que uns e outros escolhem a dita infusão, já eu, valha-me deus, não tenho organismo que precise de ajudas exteriores para tratar de expulsar a bosta e, graças a deus, até defeco todos os dias, quase horas certas, caca nem muito dura nem muito líquida, sobre as cores não avanço nada, não porque as minhas fezes não as tenham, aliás bonitas cores para merda, mas porque, pela variedade de tonalidades que vão apresentando, se me tornar impossível eleger uma cor predominante, e tudo isto para dizer que este saboroso chá, se o escolhi, foi pelo seu sabor, ou pelo frio da rua, ou pelo cinzento do céu, e não porque o meu sistema cagativo fez chegar ao cérebro a reivindicação de que, acaso não recebesse apoios estranhos ao seu normal funcionamento, faria greve, não procederia à ...

Exercícios de escrita: diálogos saramagueanos.

Na esplanada da praia Olhando agora o céu azul, as fofas nuvens que espaçadamente por lá vagueiam, aquele sol que tinge a linha acima do oceano de um amarelo quente, quem diria que ontem, noite dentro, a terra foi esventrada das árvores, as telhas abandonaram as vigas e as placas dos telhados, a minha mesa do quintal dançou como uma marioneta de trezentas gramas, Ninguém, É só isso que dizes, Que mais queres que te diga, Então estive aqui a esmerar-me a escolher palavras para descrever este contraste bruto como quem escolhe e mistura tintas para pintar uma paisagem campestre e tu só me atiras um monocórdico ninguém, Querias o quê, então, Pá, sei lá, queria um bocadinho de consideração, de igualdade de tratamento, não penses que é hábito meu andar a vasculhar o dicionário da cabeça para dar ignição a uma conversa de café, Então por que o fizeste, Ora essa, porque achei que assim me tornava interessante, que te agradava, que te captava a atenção, sei lá, E que te leva a crer que não fize...

Fé, senhores Josés, penas, apelo - o que for.

Qu´hoje-e-sempre sejam dias-de-ver-e-não-d´olhar! Mas, dizei-me, qu´outra qualidade de cegos temos sido, senhor José? Dizei-me, lh´imploro! Revoltado, claro, com este marasmo generalizado! Até quando uma reacção, um reflexo que seja? Pois se víssemos, nã-só olhássemos, que teríamos na vez desta plutocracia, desta cleptocracia, deste nepotismo, desta democracia? Oh!, tampouco me sabe responder? Pois que pena, pois que rosário de penas! O irei desfiando num pranto, ora pois, que me resta? Será que me satisfaz, será que o satisfaz, senhor José?, o sentimento, mesmo que ilusório ou, até, presunçoso, de dever cumprido? Pois que m´apego às obras dos poucos como o senhor, senhor José, qu´inspiram, qu´ensinam, que norteam e motivam e, acima de tudo, não cessam de nos abastecer da mais cara, da mais essencial, da mais preciosa das fontes d´energia: a FÉ! Um grande bem-haja, senhor José!