Das conversas de café

Um grupo de rapazes conversava animadamente num café, já noite avançada. Em cima da mesa, a par de chávenas de café e copos de imperial vazios, estava o estado do Estado. Os vivas e os morras circulavam generosamente, bem como as causas maiores e as soluções totais.
A certa altura, quando já o cansaço da repetição (amiúde se debatia o assunto) e a cerveja amoleciam o grupo, um dos rapazes, que até ali permanecera menos interventivo, tirou do bornal um livro, folheou-o num instante em busca duma página e, tendo encontrado o que procurava, começou a ler em voz alta*: "Aqui há anos, o Ricardo médico, muito a sério, influenciado pelo estilo e eficácia das operações de comandos, jurava que meia dúzia de homens, uns dez no máximo, bem treinados, podiam assaltar ali S. Bento, rajada aqui, bomba acolá, facada além, e num ápice raptar o Salazar [era ainda tempo dele], acabar com o fascismo, salvar o país, em suma." Todos em redor ouviam atentamente. E ele seguia lendo, impávido: "O António, que sorria sarcástico, respondeu que nem eram precisos tantos, que dois bastavam. O Ricardo, compenetrado, entrou no jogo e defendeu a sua tese: que não, que dois era um disparate; dez, sim, ou seis, em último caso. Teimava o António: dois eram suficientes. E até seria capaz de apontar já a parelha de salvadores. Ele, António, e ele, Ricardo." A leitura rasgava alguns sorrisos nos rostos presentes. Prosseguia o leitor: "E provocava: «Queres ir? No fundo, vê se percebes, a questão é esta: quando nós quisermos ir, nós, percebes, isto acaba, não aguenta, não dura um fósforo. Mas é preciso ir, não ficar aqui, no conchego, a dizer que são precisos seis ou dez»." Quando terminou, o rapaz não olhou em volta nem achegou nada de sua lavra. Manteve os olhos no livro, enquanto paulatinamente o fechava e o devolvia ao interior da sua mala a tira-colo. Em volta, um silêncio ambíguo instalara-se. Se era certo que os sorrisos de uns e o acenar lento da cabeça de outros apontavam para um duplo reconhecimento da pertinência da citação, fosse ao que a tinha feito, fosse ao que a tinha escrito, era como se um desconforto comum se apossasse dos rapazes. Seria derivado do fogacho de responsabilidade que rebrilhava da lógica do que se acabara de ler? Sentir-se-iam Ricardos? Estavam todos mudos e quedos.
Ao cabo de um instante mais, tornou a voz seca do rapaz do livro, que fixava a colher de café que segurava entre o indicador e o polegar: "Mas, ao mesmo tempo, quer dizer, vou eu estar a sacrificar-me por todos, por uma mudança que a todos beneficiaria ainda que apenas eu me arriscasse?". Renovadamente se observaram sorrisos e acenos no grupo. Mas agora com uma energia diferente, que o observador mais atento identificaria com o alívio proveniente daquele álibi em forma de interrogação, aliás posto de modo tão simples que, futuramente, dele se não olvidariam quando a situação o pedisse. Ali viam (viam?) uma absolvição. Até porque havia sido proferida por aquele que, talvez inconscientemente, lhes havia lido o texto da acusação.
Quiçá receosos de, com algum comentário descuidado e, sobretudo, naquele ponto desnecessário, perderem a condição de inocentes (alguma vez o teriam deixado de ser?), todos se mantiveram quedos e mudos, com os olhares desencontrados e desfocados.
Ali perto, o dono do café, homem de idade avançada e olhar cansado, empinava as cadeiras de pernas para o ar em cima das mesas. Aproximava-se o fecho. Grupos como aquele já muitos por ali tinham passado e ele já os conhecia bem. Este era só igual aos outros.
.
* da página 240 do Manual de Pintura e Caligrafia (1983), de José Saramago.

Mensagens populares deste blogue

Algo de errado se passa.

Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem

Os números COVID-19: ou latos em excesso, ou inconsistentes, ou pouco consolidados