(en) Fado

A priori, muito se me afigura matéria de gritante negação duma putativa alma-pátria, dum suposto substrato colectivo do nacional gentílico, duma pretensa Música Nacional Canção Portuguesa. Afinal de contas, não se trata de uma qualquer divina trindade, não obstante a coincidência numeral – melancolia de poeta, lamento de mulher, doze cordas num pranto. Trata-se, tão-só, de uma canção. Umazinha. O Fado.
Mas eis que, no íntimo e mudo contraditório do pensamento, e nas ganas de refutar tamanhos méritos à fadista arte, género musical dentre tantos, uma ideia assomou harmoniosa sobre as demais. A saber (sintetizada), Seiscentos e cinquenta anos precisaram as gentes para se conhecerem. E isto dito assim de molde a contrariar o que, sabendo-se da aventada fundação do estilo, se poderia, inversamente, afirmar, isto é (sintetizando), Não bastam pouco mais de duzentos anos para se cantar um povo.
Será então nestes meandros que a conversa afina, se me é permitida a expressão. Virá talvez a propósito lembrar aos pré-requisitos a que o Poeta se referiu para uma mais sã interpretação da sua nacionalista Mensagem, são eles a Simpatia, a Intuição, a Inteligência, a Compreensão e (numa palavra) a Graça. É que, sem que se dê por ela, parece vero que aqui vamos falando de assuntos de gravidade e filosofia que muito merecem nossos respeito e consideração.
Ora então vamos lá, a três tempos, para não maçar – mais.
Em primeiro lugar, e salvaguardando os fatais defeitos da brevidade da conversa e os incontornáveis limites que as palavras, mesmo as escrevinhadas, sempiternamente nos imporão, não se tratará, como já aqui se disse, de cantar um povo, mas, isso sim, de um povo cantando-se. O que, parecendo assemelhar-se, significa diferença.
Em segundo, que cada vez mais se trata de assunto aturisticalhado, enjoo de ver reeditados álbuns da Amália ou colectâneas várias grafados duma ponta a outra na inglesa língua, Ladies and gentlemen, the Queen of Fado, pá, jeito sabido, ora bem, de arregaçar a mini-saia, cavar o decote e enrubescer os beiços dum destino turístico que desde idos tempos se prostitui.
Em terceiro, e no seguimento do que se acabou de dizer, que o Fado enquanto banda sonora do português país é assumpção que só muito à força se engole, e força fetichista, que fadinhos à séria irão pouco além daqueles que se ouvem ainda por essas travessas de Alfama, por esses pátios da Mouraria ou por esses becos do Bairro Alto, e, claro está, sob o egrégio afago da Sé coimbrã, este último aliás sobremaneira distinto dos primeiros, que não serão concerteza uns e outros farinha do mesmo saco.
E mais se diga que sim, que o Fado é português. Que não, que o Fado não é o Português (ou será?). E, finalmente, que a sua associação ao Estado Novo, a partir de meados do período salazarista – re-aproveitamento rato daqueles que, quando ele (o Fado), pelos idos de 1920, 1930, parecia constituir-se como voz de intervenção, lhe cortaram as vasas –, muito justificou o desprezo a que ficou votado no pós-25 de Abril por uma percentagem larga da população e que, ou muito me engano, ou futuramente, caso o dito aturisticalhamento a que acima me referi não for regrado - a um outro desprezo, a uma outra desconsideração se verá fadado.

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