Exercícios de escrita: diálogos saramagueanos.

Na esplanada da praia
Olhando agora o céu azul, as fofas nuvens que espaçadamente por lá vagueiam, aquele sol que tinge a linha acima do oceano de um amarelo quente, quem diria que ontem, noite dentro, a terra foi esventrada das árvores, as telhas abandonaram as vigas e as placas dos telhados, a minha mesa do quintal dançou como uma marioneta de trezentas gramas, Ninguém, É só isso que dizes, Que mais queres que te diga, Então estive aqui a esmerar-me a escolher palavras para descrever este contraste bruto como quem escolhe e mistura tintas para pintar uma paisagem campestre e tu só me atiras um monocórdico ninguém, Querias o quê, então, Pá, sei lá, queria um bocadinho de consideração, de igualdade de tratamento, não penses que é hábito meu andar a vasculhar o dicionário da cabeça para dar ignição a uma conversa de café, Então por que o fizeste, Ora essa, porque achei que assim me tornava interessante, que te agradava, que te captava a atenção, sei lá, E que te leva a crer que não fizeste tudo isso, Então, que achas, já to disse, foi esse ninguém que mais parece que o tossiste, foi esse olhar distante quando o disseste, olhar de desinteresse, de desprezo, até, Xii, onde isso já vai, não te enerves, Não me enervo, ainda tens a lata de me atirar com essa à cara, à laia de gozo, estás a divertir-te comigo, é, a rir-te de mim, pensas que eu sou o quê, alguma miúda com quem podes brincar da maneira que te apetece, Tem calma, as pessoas já estão a olhar, Que olhem, que vejam como és, eu quando tenho alguma coisa a dizer, digo-a, não guardo, sou directa, gosto de dizer as coisas na cara, não as guardo, Mas não achas que estás a exagerar um bocado, já, O quê, era o que faltava, a exagerar, vejam bem, o que uma pessoa tem que ouvir, burra fui eu que pensei que tu eras diferente, afinal não, não passas de um traste, de um insensível, só me querias levar para a cama, só me querias comer, Estás doida, só pode, Ai estou estou, e pensar que já me imaginava a viver contigo, a ter filhos contigo, uma casa, tudo, Mas conhecemo-nos há duas semanas, Que para ti não significaram nada, ao que vejo, Mas, É o que eu digo, só me querias comer, que estúpida que fui, pá, Bem, não sei que te dizer, não esperava nada disto, nem acho que isto faça algum sentido, acho que, Achas o quê, e onde pensas que vais, daqui é que tu não sais, ou pensas que brincas comigo, ninguém brinca comigo, está a ouvir, senhor Ninguém, ninguém brinca comigo, e nem penses que te levantas, anda cá, Larga-me o braço, se fazes favor, acho que não tens noção do que estás a fazer ou a dizer, Insulta-me mais, insulta, nem sabes o que te espera, que isto comigo não se brinca, e vocês, estão todos a olhar para onde, metam-se na vossa vida, na vossa vida perfeita, cambada de falsos, olham-me de alto a baixo, mas são todos uns falsos, são ainda mais infelizes que eu, Tem calma, olha que isto está a ir longe demais, Longe demais longe demais, longe demais era eu pôr um ponto final nesta merda toda de uma vez por todas, Estás louca, vou-me embora, Isso pensas tu, daqui já não sais, já te disse, Que é isso, que ideia é essa de andar com uma pistola na bolsa, guarda isso, estás-me a deixar assustado, Assustado, é, mas quando não me trataste como eu merecia, quando só disseste ninguém como quem se está borrifando para a conversa, não estavas assustado, não é, agora estás é todo cagado, e se pensas que não sou capaz de te dar um tiro já aqui, estás muito enganado, Tem calma, por favor, guarda isso, Calma, o caraças, Guarda isso, Cala-te, Por favor, peço-te, não me, Cala-te cala-te cala-te cala-te cala-te cala-te.

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