Exercícios de escrita: saramaguices.

Emborco mais um gole de chá de camomila, esse que tem fama de ser bom para estômago e intestinos, antecâmaras sequenciais e preparatórias da evacuação da merda propriamente dita, que, quer-me parecer, será a pensar nisso que uns e outros escolhem a dita infusão, já eu, valha-me deus, não tenho organismo que precise de ajudas exteriores para tratar de expulsar a bosta e, graças a deus, até defeco todos os dias, quase horas certas, caca nem muito dura nem muito líquida, sobre as cores não avanço nada, não porque as minhas fezes não as tenham, aliás bonitas cores para merda, mas porque, pela variedade de tonalidades que vão apresentando, se me tornar impossível eleger uma cor predominante, e tudo isto para dizer que este saboroso chá, se o escolhi, foi pelo seu sabor, ou pelo frio da rua, ou pelo cinzento do céu, e não porque o meu sistema cagativo fez chegar ao cérebro a reivindicação de que, acaso não recebesse apoios estranhos ao seu normal funcionamento, faria greve, não procederia à libertação do cagalhoto, ao que o meu cérebro, se de facto se assustasse com a manifestação, responderia fazendo chegar uma mensagem aos músculos movimentadores da minha boca para que, no momento de fazer o pedido no balcão, dissesse Quero um chá de camomila, se faz favor, mas tudo isto não aconteceu, aconteceu tão-só que cruzei o café até ao balcão, cumprimentei a senhora que do outro lado da barricada me olhava e, num ápice passando em revista os desejos listados no caminho de carro até ali, decidi que queria um chá de camomila, acto contínuo transmiti-o, Quero um chá de camomila, se faz favor, a senhora que absorta me mirava movimentou-se como um robô, sacou a saqueta da malinha de madeira que ali jazia esquecida entre a máquina de café e a de imperial, aqueceu a água, afogou lá a tal saquetazita, manchou o líquido, tudo a fumegar, senhora e líquido, ela por uma razão, ele por outra, ambas extrínsecas a eles próprios, de modo que eu, feito compreensivo e psicólogo de cordel, no acto de pagamento sorri-lhe um Bem-haja, ao que ela gesticulou um Tira-me daqui enquanto registava maquinalmente o episódio na caixa, mas eu retorqui num vincar de sobrancelhas um Todos temos os nossos problemas, nada posso fazer por si, minha senhora, ela nada mais fez, e que importava que fizesse, já eu tinha virado costas, já eu me dirigia à mesa ao pé da janela, que o que queria era emborcar o chá e ver os carros e as pessoas e a chuva, sentado, descansado, aconchegado e, sobretudo, em paz. Seja lá isso o que for.

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