Legislativas dois mil e nove II

Desengane-se, caro telespectador, nada disto é feito para o maçar. Nada. E neste imenso nada tudo cabe: os programas eleitorais, os debates televisivos, as sondagens de intenções, os tempos de antena da rádio, os folhetos do metropolitano, os cartazes de beira de estrada, as entrevistas dos jornais, os fóruns de opiniões, os blogs dos candidatos, os sites dos partidos.
Desengane-se, caro telespectador, de tudo isto (tamanho nada) nada foi concebido para o maçar. Aliás, se reparar bem (repare bem, caro telespectador) nada disto o maça. Antes pelo contrário.
Desengane-se, caro telespectador, pois é com este sufocante nada, pois é justamente através deste omnipresente nada que, se atentar bem (atente bem) o senhor telespectador se não maça com coisa nenhuma.
Desengane-se (já se desenganou?) não fosse tudo isto, não fossem os programas, os debates, os folhetos, as sondagens, os cartazes, os altifalantes, as entrevistas (pausa) e o período de campanha eleitoral seria (pausa) uma grande maçada.
Porquê, caro telespectador? Ora, porque tudo isto foi feito para que esqueça o que ficou para trás e o mais que aí vem, para que não ligue, não passe cartão, para que não tome atenção, para que mude de canal, para que ouça e não escute, para que deite no caixote do lixo. Para, enfim, que se canse de vez. E desligue. Para que não saiba (pausa) nem queira saber.
Caro telespectador (pausa) tudo isto, todo este espectacular nada, inibe-o de pensar. Mais!, atira-lhe em cara que é perfeitamente (mas perfeitamente) inútil pensar. Pense bem: haverá coisa mais chata e inconsequente de se fazer?
A si, caro telespectador, basta-lhe tão somente votar (vote, caro telespectador). Tão básico quanto isto, rabiscar uma cruz num quadrado!
(e de que lhe vale que não lhe baste votar, que não se contente cu rabisco democrático, que não se satisfaça com esse pouco, essoutro nada? Que mais lhe autorizam fazer, diga-me cá?)
Desengane-se, por favor, caro telespectador: tudo isto que julga ter sido criado para o maçar, todas as entrevistas e debates, todos os folhetos e cartazes, tudo isto foi, isso sim, concebido para lhe tornar o já de si elementar acto de votar no mais abjecto automatismo acéfalo. Sem chatices (não se chateie, caro telespectador), sem que precise de reflectir (não reflicta), sem necessidade de ponderar (vá, deixe-se disso), sem maçadas para essa pobre cabecinha.
Tudo complicadamente simplificado, tudo reduzido a uma matemática primária, a uma inacessível hipótese académica, é a vida reduzida a fórmula administrativa, é uma realidade artificial, é o Vote, é o Exerça o seu direito de voto, é o Não sabe em qual votar que são muitos quadradinhos?, é o voto "útil", as cu ligações, os movimentos civis e os pequenos partidos, os da direita e da esquerda, é a governabilidade, é o raio que os parta!
Eu explico-lhe (se não entendeu ainda) para que não restem ao caro telespectador quaisquer dúvidas: pê-ésse ou pê-ésse-dê, qual quer? Leite ou sócrates, qual leva?
(pausa)
Como vê, caro telespectador, tudo isto foi feito para o entreter. Jamais para o maçar.
Obrigado por ter estado desse lado (por estar sempre desse lado, a cumprir com o seu papel).
(mas ouça, se, mesmo assim, se sente maçado e incomodado com este período de campanha eleitoral, ó senhor telespectador, não se martirize (não me foda o juízo, desampare-me a loja): não vote! Não pode crer realmente que tudo isto, todo este maldito nada, não passa bem sem a merda do seu voto. Ora, ora. Isso seria um bocado arriscado, não lhe parece?)

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