Hoje ouvi a tua voz

Hoje ouvi a tua voz. Foi quando fui às furnas olhar o oceano. Soube logo que eras tu.

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O oceano era, como o céu, uma massa parda e opaca. O céu estava muito baixo e carregado. As vagas buliam violentamente nas rochas numa dança ensurdecedora. Sabes como é, mal dá para conversar com alguém. E chovia a bom chover. O vento soprava de sudoeste e trazia a chuva tocada. Um temporal, enfim. Por cá tem estado assim, já de há umas duas semanas para cá.

E então ouvi a tua voz. Soube logo que eras tu. Ouvi-te perfeitamente, limpidamente, apesar da tormenta. Quanto te ouvi, porém, não te procurei com o olhar. Ouvi-te, mas não mirei em redor a ver se te via. Ouvi-te e não me mexi. Permaneci imóvel, a dar a cara ao mar negro e revolto. Se alguém ali estivesse por perto e me observasse nesse momento não seria capaz de dizer que eu tinha ouvido a tua voz, porque não se aperceberia da leve contracção do meu maxilar, porque não daria importância à ruga que então me sulcou a testa. E porque, de todo o modo, não lhe teria sido possível ouvir o mais leve murmúrio da tua voz.

Não me mexi, porque não me surpreendeu ouvir a tua voz. Eu sabia que ia ouvir a tua voz.

Foi quando ouvi a tua voz que recordei (uma vez mais) as palavras que me deixaste numa das muitas remessas para a posta restante de Portalegre, que eu fui desencantar no meio de umas sebentas uns meses depois de teres morrido e que me foram suaves como mil punhais cravados no peito. Porta-te mal, dizias tu com a tua letra forte e bonita (caligrafia que eu tento imitar). Era o que costumavas dizer ao telefone quando desligavas: porta-te mal. Foi quando ouvi a tua voz que fechei o chapéu-de-chuva (ainda teimo em usar aquele chapéu velho, preto, que era teu) e recebi na cara nua a fúria do vento e o frio da chuva. E então pude, finalmente, francamente, chorar.

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22 de junho de 2007