O meu amigo diz-me que...

2 O meu amigo diz-me que um trabalhador feliz produz mais. E que importa isso? Um trabalhador infeliz consome mais, e eis o que importa. Uma pessoa infeliz tem mais necessidades, e de todas as ordens, e, por força de se ver cercada de infelizes incapazes de lhe suprirem emocional e praticamente as carências, vinga-se na mercadoria, na tralha, no hi-tech - onde aliás se revê, com que, em larga medida, se identifica. Neste ponto, o infeliz não encontra felicidade senão na mercadoria. O contacto interpessoal só lhe é aprazível numa dialética de consumidor-vendedor. O aumento da produção não é, como nos querem fazer crer, questão premente para as economias das nações amodernadas. O consumo, esse sim, o consumo é fulcral, é crítico. Ora bem, temos que, economicamente falando, urge promover um desenvolvimento sustentado da Infelicidade. É manter a rota, portanto. "Tudo a sudoeste!", como rugia aquele bem-aventurado capitão que não hesitou em deixar para trás um marinheiro caído ao mar para não perder o vento que finalmente estava de feição.

O meu amigo ri-se. Julga porventura que gracejo. Bom, talvez lhe bote uma pitada de ironia aqui e ali, mas não se deixe distrair por esse pouco. Creia que lhe falo com a maior das seriedades. Repare, à laia de exemplo, naquele casalito que acaba de entrar. Vêm cá diariamente, são freguesia certa. Observe-os com atenção. Veja como escolhem da montra os dois maiores bolos, e os que ostentam maior dose de creme ou chocolate. Note como comem, sem uma palavra, cada qual para seu lado. Alguém que só agora os olhasse julgaria certamente que apenas partilham a mesa por estarem as restantes já ocupadas - e, no entanto, posso assegurar-lhe que são marido e mulher há quase duas décadas. É notável o apetite que exibem, não concorda? Àquilo chama-se devorar, meu caro amigo. Ah, aprecie como nem sequer despiram os casacos, ainda que isso fosse aconselhável, dada a variação da temperatura - que é assim que uma pessoa se constipa. Mas olhe, já aspiraram tudo! Veja agora como limpam apressadamente a boca - e ala!, que aí vão eles. É notável, não acha? Presencio esta cena todos os dias. Que lhe apraz dizer a propósito disto? Que aquele casal vai com pressa provavelmente para ir buscar os filhos à escola? Não, a única filha que geraram é já crescida, mulher feita. Que têm qualquer outro compromisso diário? Ao fim da tarde? Não. Posso afirmar-lho com total certeza: seguem directos para casa. Eu próprio, revelo-lho sem vergonha, já os persegui num par ou dois de ocasiões para tirar a prova dos nove. Não lhe ocorre, então, mais nenhuma explicação? Pois deixe-me dizer-lhe a que eu achei. Aquele casal foge. Mais propriamente, não é o casal que foge. Em rigor, os dois, homem e mulher individualmente, fogem do casal. Por tremenda infelicidade, acontece que ambos, na sofreguidão que deles se apodera, ensaiam a fuga exactamente ao mesmo tempo e na mesma direcção! Resultado: a intentona sai furada. Todos os dias a tentam. E todos os dias a abortam. Assim que cada qual deita uma mirada furtiva por cima do ombro a ver se foi já capaz de despistar o casal, de o deixar à distância, ali está o consorte - a locução vem a propósito - sinalizando que ainda não foi desta. Falta-lhes talvez a coragem para a fuga definitiva, ou por outra não estejam, pura e simplesmente, certos da decisão. Entrementes, vivem naquele afogo, naquela angústia. E, o que é pior, nem saboreiam devidamente as delícias desta estupenda pastelaria.

Mensagens populares deste blogue

Algo de errado se passa.

Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem

Os números COVID-19: ou latos em excesso, ou inconsistentes, ou pouco consolidados