Normalidade (notas sobre)



Despediu-se o primeiro-ministro e ninguém se ralou grandemente. Tudo o que vai acontecendo é normal e a normalidade não é coisa que deva preocupar uma pessoa. Os acontecimentos normais também não dão azo a pasmos. Despediu-se o primeiro-ministro e não houve quem se surpreendesse genuinamente.


Normal é tudo o que acontece de facto. Não há assunto ou sucesso que, tendo acontecido, não deva desse momento em diante ser visto senão como normal. Se aconteceu, é normal - e eis tudo.


Conheci um homem que dizia um monte de vezes que normal é cada um usar o cabelo com que nasceu. Esse homem repetia isto com frequência e a propósito de toda a sorte de situações. Era a sua máxima. Era normal ele dizer que normal é cada um usar o cabelo com que nasceu e, como tal, nenhuma das pessoas dos seus relacionamentos se ralava, espantava, ou sequer ligava quando ele o repetia.


É quando uma pessoa cessa de se ralar ou espantar com as coisas que acontecem que essas mesmas coisas que acontecem se tornam completamente normais. Temos assim que não basta as coisas acontecerem para serem normais.


Normalmente, a normalidade não merece grande reflexão. De resto, reflectir acerca da normalidade é pô-la em causa e, em grande medida, anulá-la nessa sua condição de normal. A normalidade é uma condição que não autoriza reflexão. Quaisquer assuntos ou acontecimentos sujeitos a uma reflexão, por mais de raspão que seja, podem de um momento para o outro abandonar o domínio da normalidade.


Temos assim que a normalidade é tudo o que acontece, tudo o que não suscita pasmo ou ralação e tudo o que é tomado acríticamente.


A normalidade é uma reserva artificial de sanidade mental e social. Um indivíduo que teime em não aceitar com normalidade a normalidade cansa-se muito. Além disso, os outros podem estranhá-lo. Pode passar a ser olhado de modo diferente. Ele próprio pode deixar de parecer normal aos olhos dos outros.


É muito fácil uma pessoa parecer normal, ou mesmo ser normal. O mais corrente é as pessoas se imitarem umas às outras, o que aliás é muito sensato. A imitação verifica-se mesmo quando as pessoas assumem activa e conscientemente comportamentos divergentes, já que ao fazê-lo normalmente imitam aqueles que antes deles divergiram. Temos assim que a normalidade não deixa os seus créditos em mãos alheias.


As traves-mestras da normalidade são a passividade e a imitação, as quais se conspurcam uma à outra. A passividade é em última análise uma acção (ou um seu negativo) imitativa. E a imitação é uma espécie de passividade activa. Mesmo estes aspectos formais da normalidade, estes seus circuitos internos, estas suas arquitecturas, devem ser olhados à luz das três normas da normalidade assinaladas há dois minutos.


A normalidade permite analogias com muitas coisas. Por exemplo, as vacinas. Quando aqui há pouco falava de um não-pasmo ou de uma não-ralação estava em grande medida a referir-me a uma Imunidade Emocional Adquirida, relativa a determinados assuntos ou acontecimentos. Bem entendido, os assuntos e acontecimentos normais. Temos assim que aquilo a que normalmente se dá o nome de educação é, numa palavra, ensinar as crianças a serem normais.


A plasticidade do que é normal é potencialmente infinita. Mesmo acções ou ideias radicalmente diferentes dos padrões da normalidade estabelecidos em dado sítio-tempo podem sem grande dificuldade integrar essa mesma normalidade. A receita é simples: basta para tanto que se reiterem e repitam publicamente, até que inspirem pouco menos que indiferença.


Muitas vezes ouvimos ou proferimos frases de espanto ou preocupação relativamente a coisas normais. À primeira vista, tais frases parecem pequenas falhas no grande sistema da normalidade, ou até micro-revoltas. Mas não é assim. Estas aparentes falhas são, isso sim, o caos localizado indispensável à manutenção de uma qualquer ordem.


Temos portanto que a normalidade não dá que pensar.

Mensagens populares deste blogue

Algo de errado se passa.

Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem

Os números COVID-19: ou latos em excesso, ou inconsistentes, ou pouco consolidados