Foi quando li a tua mensagem

Foi quando li a tua mensagem que decidi matar-te. Respondi-te Está combinado, amigo. Registei mentalmente a hora e o sítio que propuseste, sítio e hora em que te iria matar. Pensei Mas não vai estar ninguém conhecido para presenciar a cena e é estúpido esperar que um estranho compreenda o que te vou fazer. Ter uma testemunha era para mim imprescindível. Melhor seria convidar alguém que nos conhecesse aos dois. Sugeri então fazer-me acompanhar pela minha prima sabendo que não recusarias, ela que foi sempre do teu agrado. Lembro-me quando a viste pela primeira vez, numa ocasião em que os meus tios nos vieram visitar. Brincámos a tarde toda, com aquela certeza juvenil que o tempo não passa. No dia seguinte a eles tornarem à terra, só falavas nela. E, quando te disse que o meu tio tinha conseguido trabalho cá e que eles se iam mudar para o bairro, não contiveste a alegria. De facto, pensei, ela é a testemunha ideal. Combinei com ela, tal sítio tantas horas. De seguida, a convite do silêncio cálido da casa, acabei por passar pelas brasas no sofá da sala. Quando despertei, senti-me maravilhosamente fresco. Ainda deitado, de olhos colados no tecto e os braços cruzados atrás da cabeça, reconsiderei a minha decisão de te matar. Pesei-a, medi-a. Analisei-a de todos os pontos de vista que fui capaz e finalmente concluí que era uma excelente decisão. Exclamei mesmo Como é que nunca me lembrei disto. Espreguicei-me demoradamente. Depois fui até à cozinha. Sentia fome. Preparei duas generosas torradas e uma caneca de leite e café. Foi enquanto barrava a manteiga no pão torrado que decidi usar uma faca para te matar. Com efeito, as facas sempre nos fascinaram. Quando éramos miúdos andávamos sempre com um canivete no bolso. De resto, não podia simplesmente estrangular-te. Isso ser-me-ia deveras penoso. Cravar-te uma faca no estômago, ao invés, afigurava-se-me como a forma ideal. Imaginava a derradeira confrontação olhos nos olhos e estava certo que, assim, compreenderias. Reconfortado pelo lanche, deliciado com a felicidade com que me resolvia, dirigi-me à casa-de-banho e tomei um longo duche. Barbeei-me e escolhi uma camisa passada a ferro. Olhei-me no espelho e sorri. Como é que nunca pensei nisto, voltei a exclamar, desta feita em voz alta. Soou a campainha. Era a minha prima. Pareceu-me excitadíssima com o jantar. Já lá vai um tempão, repetiu várias vezes. Foi já no carro que decidi também matá-la. Conduzia mecanicamente, absorto nos meus pensamentos. Em fundo, ouvia-lhe a alegria pelo reencontro. Ainda bem que me convidaste, priminho, disse-me ela, beliscando-me o braço direito. Enquanto estacionava, decidi que a estrangularia. Ela sempre gostara do contacto humano. Enfim, não te dou novidade nenhuma, tu sabes perfeitamente como ela adorava tocar e ser tocada. A questão de ter alguém a testemunhar a morte dela voltou a colocar-se-me. Mas novamente resolvi a questão com brilho. Foi enquanto me observava no espelho do elevador. Serias tu a testemunha da morte dela. Nem mais, tu. Tu serias a testemunha da morte dela. E ela seria a testemunha da tua morte. Quase rebentei de felicidade e orgulho com a facilidade com que me resolvia e contornava as questões. Senti um puxão meigo no braço. Era a minha prima que me chamava. Chegáramos ao piso da restauração, tínhamos de sair do elevador e ir ao teu encontro. Foi por ter tudo impecavelmente delineado na minha mente que te cumprimentei com tamanha efusão. Sentia-me positivamente satisfeito comigo mesmo. Reparei como o amplexo que vocês dois trocaram foi de franca saudade e isso inspirou em mim uma certa ternura. Vocês nem sequer desconfiavam do que vos reservara. Olhei-vos com especial enlevo durante toda a refeição. Irradiavam alegria. Isso permitiu-me arredar de vez qualquer sombra de dúvida que ainda restasse na minha cabeça. Acho que posso mesmo dizer que foram os momentos mais felizes da minha vida. Mais tarde, já no parque de estacionamento subterrâneo do centro comercial, quando te cravei na barriga a comprida faca de serrilha que uso para o pão e fixei serenamente os meus olhos nos teus, quase chorei. Tomada de surpresa e terror, foi com notável ligeireza que dominei a minha prima e a estrangulei. Nunca antes me sentira tão próximo de alguém. Assim que ela cessou de resistir, voltei-me para ti para confirmar se tinhas assistido à sua agonia. Eras um feto absurdo que uma mulher gigante acabava de abortar. Ao teu redor, o sangue alastrava como um pequeno mar escuro e um cheiro intenso e animalesco começava a impregnar o ar. A tua respiração irregular produzia um silvo triste ao chegar à garganta. Não tiraste os olhos dela neste meio-tempo e até isso me agradou. Não queria que me mirasses senão no momento em que te metia a faca abdómen adentro. Assim, não tive que explicar duas vezes. Quando senti que podia, encostei-me a um dos pilares de betão do enorme edifício e enxuguei o suor da cara. A certa altura, receei que levasses muito tempo a morrer. Mas não. Até morreste rápido. Tudo correu conforme planeado e isso encheu-me de uma felicidade indizível. Acto contínuo, senti-me súbita e profundamente exausto e mal dei conta de adormecer mesmo ali, sentado no alcatrão liso e frio do estacionamento do centro comercial, com os vossos dois corpos inanimados a meus pés e um cheiro cada vez mais insuportável por cima de nós.

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