Vazio

Já abri o bloco, empunho já a esferográfica, deparo-me com a folha branca em branco, arrisco as primeiras palavras, as primeiras frases, a folha branca deixa progressivamente de estar em branco, é agora um manto de leite com irregulares traços a preto, já a folha tem a metade de cima gasta e ainda eu não sei o que fazer com ela, ainda eu não sei senão que todos os meus nervos e músculos, todos os meus impulsos cerebrais, tudo à uma me impele para escrever, escrever que ao fim e ao cabo não é senão isto, deixar palavras e letras gravadas a tinta, indiferentes ou quase, resistentes ou quase ao correr dos dias, amanhã ou para o ano posso aqui voltar, a esta folha branca que num dado momento deixou de estar em branco, a esta folha branca que aguardava este realizar, este ser que é o do papel, esta concretização de ser riscada, voltar aqui, dizia, a esta folha e, ao fazê-lo, voltar aqui, a esta esplanada fria, a esta manhã inquieta, a esta terça-feira de um junho a dar os seus primeiros passos, a esta hora em que não me sais da cabeça, a esta tormentosa hora em que me tento decifrar, em que me embrenho no meu labirinto, em que não me encontro, em que nem o facto de ter sido sempre esta a minha condição me consola, a este pedaço de dia que prevejo vão, a tudo isto que, tivesse eu novamente tomado a incerteza como razão suficiente para me dizer não, não poderia tornar amanhã ou no ano que vem ou quem sabe até mais tarde, comigo já entrado de idade mas ainda perdido num labirinto cada vez mais sombrio, cada vez mais tortuoso, cada vez mais labiríntico, não poderia aqui regressar e voltar a ver-me, a ver-te com estes olhos que agora tenho, atrás dos quais vou olhando em volta, com os quais tento ver em volta, voltar a esta manhã onde o teu nome me tolda os sentidos, teu nome que repito, que peso as sílabas, a que carrego a primeira letra e termino sussurrando como se te chamasse, como se implorasse, porque te quero, porque a tua ausência me dói, porque te poderia amar, porque na cadeira vazia que me observa do outro lado da mesa podias estar tu, devias estar tu.

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