11 de Setembro: 13 anos

O jornal de hoje estava pejado de pequenos artigos e entrevistas de e a académicos, analistas e políticos de carreira que, não sem generosidade, partilharam da sua mundividência acerca do que tem passado no Iraque e um pouco por todo o Médio Oriente, das perfídias do Estado Islâmico & outros que tais e, enfim, do «terrorismo internacional» em geral. Fiquei sabendo, por estes miradas impressas, que os olhinhos de todos estes ilustres homens ilustres só enxergam pelo estreito deixado pelas palas erigidas no bárbaro derrube do World Trade Center, no dia 11 de Setembro de 2001, há 13 anos em ponto. O presente é por esta gente observado à luz da impossível versão das autoridades estadunidenses e mesmo quanto ao futuro são as suas posições meramente o eco das já remotas futurologias oficiais do pós-11/09. Nada de novo: uma mentira horrível foi feita História.
Estão em causa coisas muitíssimo mais importantes que a História (que não é só uma disciplina pseudo-científica encomendada, ou pelo menos convenientemente domesticada, pelos Vencedores; é também um terreno fértil por natureza para o cultivo de toda a sorte de mitos, bem como dumas quantas modas mais ou menos passageiras). Estão em causa 13 anos de agressões armadas e invasões militares estrategicamente perpretadas em larga escala e que se traduziram num ror indizível de atrocidades, mortes e novas formas de caos (nalguns casos, formas inaugurais de caos) infligidas a povos e em territórios que uma aliás muy light propaganda, a que nem sequer faltou o elemento religioso, travestiu num pretenso inimigo global, simultaneamente anónimo e identificado, longínquo e vizinho, primitivo e sofisticado.
(Quando, por ocasião da atroz execução em vídeo de dois reféns, o carrasco, apresentado como sendo um jihadista do Estado Islâmico, falou num inglês de sotaque britânico, a máquina propagandística assustou-se ligeiramente: aquilo não encaixava lá muito bem no preto-e-branco distribuído para consumo geral.)
Estão em causa também um conjunto vastíssimo de leis, normas e directivas aprovadas sobretudo ainda durante o período de choque (pico do acriticismo) pós-11/09, mas também ao longo dos últimos anos, que ampliaram assinalavelmente o raio de acção dos governos norte-americano e europeus na intrusão e controle de liberdades individuais ligadas à privacidade, à expressão intelectual e artística ou à deslocação de pessoas e bens. Tudo feito, claro está, em nome da sobre todas sagrada segurança dos Estados.
Estão em causa, numa palavra, os fundamentos básicos de qualquer sociedade que se deseje livre e informada: justamente a sua liberdade e a informação a que tem acesso.

Hoje o jornal anunciava a estreia d' Os Maias, de João Botelho. Ao que parece, o realizador português usou, a par com elementos naturais, telas gigantes com pinturas de João Queiroz para as cenas exteriores, deixando a nu a mentira essencial de qualquer produção artística, "confessando - nas palavras de João Lopes - a manipulação que o sustenta [ao cinema, bem entendido]". Esta abordagem é quase diametralmente oposta à esmagadora maioria do cinema de grande distribuição filmado em Hollywood na última vintena de anos, em que, mais do que recorrer a uma representação do real como veículo da ficção, se procurou em grande medida tomar o lugar do real, substituindo-o. Aquilo que nos é dado ver nesses filmes (quanto a cenários e tramas) não é uma representação, uma imitação, menos ainda uma mera moldura ou cenário; aquilo é a realidade, a realidade é assim.
O que, a ser verdade, não será alheio à facilidade quase incompreensível com que (voltando ao 11/09) a inverosímel versão oficial foi globalmente acatada (das poltronas almofadadas da audiência entertain me dos cinemas Lusomundo aos estrados de madeira dos professores universitários). Isto é dizer que o cinema pop, nem por isso perdendo a sua condição de forma de expressão artística, é mais uma roda-dentada da engrenagem cujo intuito consiste no adormecimento geral do sentido crítico (trave-mestra das democracias maduras). E que a "informação" veiculada pelos mass media, feita para e por uma sociedade espectacularizada, é outra.
Recordo-me duma conversa de café com dois amigos, numa noite no Verão de 2004, a propósito dos atentados em Madrid (11/03). Eu questionava as versões que nos chegavam pelos meios de comunicação de todos estes acontecimentos; incrédulo, chamava a atenção para o facto de, após num primeiro momento as autoridades espanholas terem apontado o dedo à ETA, se terem virado para a al-Qaeda por terem encontrado numa carrinha tipo Kangoo estacionada, salvo erro, perto da Estação de Atocha "engenhos explosivos" e folhas soltas do Corão. Não entendendo a minha hesitação perante tamanhas evidências, disse-me de pronto um dos meus convivas:
"- Então e queres mais provas?!"

Estes mecanismos oficiais e públicos de criação-recriação histórica são assustadoramente eficazes, e nisto refiro-me também aos seus agentes e produtos finais propriamente ditos. A alternativa - verdadeiramente, apenas uma: cada um de nós com a sua precária memória e a sua visão dos acontecimentos que, melhor ou pior, testemunhou - não dispõe, seja em que contexto for (e, quanto mais abrangente, pior), do arcaboiço de certeza & credibilidade que se insiste em reconhecer a estes mecanismos, cuja profunda eficácia é especialmente azeda quando, volvidos apenas 13 anos, mesmo um tenaz e convicto desalinhado hesita e dá por si a questionar boa parte de tudo aquilo em que acreditou e por que se bateu há, afinal, tão pouco tempo.
(Que, tendo o desalinhado hesitado e questionado os seus fundamentos, retome, ainda que a partir do interior da pele diferente que hoje o envolve, aquilo que noutra época o tomou praticamente por inteiro e, com uma boa porção de filosofia à mistura, se reencontre até nesse processo, resulta quase indiferente.)

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