"O que é a vida sem casa?"

Terá sido nos idos de 1995: a Ilha do Fogo reafirmava a justiça do seu baptismo ao tirar do estômago da terra, já não as batatas ou o feijão que os insulares lhe rogavam, mas uma lava rubra & negra que, de par com uma cinza sem fim que descia dos céus, foi de casa em casa caminhando, com a certeza duplamente lenta e repentina da Morte, a trazer a má-nova do fim de tudo o que, até ali, fora a vida.
Um jornalista português foi até àquelas paragens com a incumbência de recambiar de volta à costa atlântica da Península os ecos que a sua ciência lhe desse azo de recambiar. Dele a expressão «lava rubra e negra». Terá estado com um homem junto à sua casa já moribunda, apenas matemática questão de cronómetro até à derrocada do antepenúltimo pedaço anteceder a do penúltimo, e essa, por sua vez, a do derradeiro. Instado a deixar aquele lugar de desespero, o homem terá respondido: "fico até ao fim, fico até ao princípio da minha vida nova".
Noutro local, andando as autoridades a garantir a evacuação das casas ainda só ameaçadas, depararam-se com uma casa estranhamente encerrada por inteiro ao mundo exterior. Um agente bateu a saber dos de dentro. Não recebeu resposta. Insistiu e obteve o mesmo nenhum resultado. Diz que foi instinto: arrombou a porta e entrou na casa escura. Lá dentro, nesse escuro nocturno, na cama do casal, a família inteira, pai, mãe e seus seis filhos: como quem finge dormir e apenas sonhar um pesadelo que cessará ao acordar. O agente ordenou-lhes que saíssem dali para fora, e sem demoras, a lava estava a metros! Mas qual, o pai, parecendo crer que assim protegeria os seus outros eus, envolveu com os seus braços nus mulher e filhos e mostrou-se determinado a quedar-se ali, e o que viesse, chegaria. O agente endureceu a sua ordem, terá inclusivé ameaçado precipitadamente de morte o pai da família; e por fim, com a lava a homem-e-meio de distância da primeira parede da habitação, lá os terá levado todos oito a sair dali para lugar seguro. Numa angústia profunda, o homem evacuado à força terá dito ao agente que a casa é a vida de um homem. E mais: "se ficarmos sem a casa, que é a vida? O que é a vida sem casa?"
O que é a vida sem casa?
Quando li esta pergunta, senti-te instantaneamente ao meu lado, dentro do meu peito, tu inteira à minha volta, céu, chão, cadeira, papel, coração e mãos. O que é a vida sem amor? O que é a vida? O que é a casa? O que é sentir um sítio, ou alguém, como tal e chamar-lhes, intimamente, 'casa'? O que será, tendo uma vida, tendo amor, tendo um sítio a que chamar casa, assistir impotentemente ao seu fim?
Frente à casa em derrocada irrevogável, o homem terá respondido: "fico até ao fim, fico até ao princípio da minha vida nova".

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