Estilo, penetração, candidez

Cruzei-me na rua com um cidadão que flanava nestes preparos:

Apanhado desprevenido por tamanha concentração de estilo, não desolhei logo. Ele mirou-me de volta. Parecia perguntar:

- Que é?

Havia uma sentença nessa remirada:

- Não é multado quem usa mal. É quem não usa.

Ponderei falar-lhe do ponto 1 do artigo 3.º da Lei n.º 62-A/2020, de 27 de Outubro de 2020. Mas deixei-me estar quieto. Nunca nada de bom se segue a citarmos legislação.

Adiante, à esquina, três anciãos debatiam os números do dia. Atirou um, assim como quem não quer a coisa:

- De ontem para hoje, mais treuze. Já faz trazentos e oitenta e um.

Mas outro, logo a altear a voz, corrigiu:

- Qual quê! Trazentos e oitenta e três, pá, três-oito-três, que eu ainda ao almoço vi isso.

O primeiro, dando um jeito à máscara, fez-se de desentendido. Seguiu escarafunchando o ecrã do smartphone com o indicador.

- Diz que desde Março que não tínhamos cá tantos no concelho.

Ainda o homem não acabara o “tínhamos” e já o segundo rugia, meio descomposto:

- E tu a dar-lhe, hã? Estou farto de te dizer que na segunda semana de Maio...

E disparou de cabeça uns números complicados. O primeiro pareceu despeitado e estava a pontos de reagir. Mas antes que encontrasse o que dizer, já o terceiro cidadão, de olhar esgazeado perdido nos telhados do casario da praça, o casaco de malha que a esposa lhe abotoara até baixo a arredondar-lhe as vastidões abdominais, lhes largava esta no colo:

- Isto só vai lá com o Exército nas ruas.

E depois de uma pausa dramática, sem nunca desfixar os infinitos, repetiu, com lentidão estudada:

- Isto, meus amigos, só vai lá com o Exército nas ruas.

Os outros dois, subitamente esmagados pela penetração do companheiro, viram-se a fazer imbecilmente que sim com a cabeça. E ficaram-se todos três muito sérios a ruminar naquilo.

Acho que passei o resto do caminho a tentar calcular o peso relativo de quatrocentos infectados num concelho com mais de oitenta mil almas.












Quando entrei em casa, pus sem pensar a tranca na porta. Caí no sofá, frente à televisão, subitamente exausto. Na SIC Notícias, metade do ecrã exibia o surfista Frederico Morais, conhecido no circuito por Kikas. Uma pequena frase resumia, com a confusão costumeira: “FREDERICO MORAIS INFETADO COM COVID-19”.

Depois de dois anos de trabalho, o sonho olímpico de Kikas sucumbia à frieza laboratorial de um contumaz «positivo». Perfeitamente assintomático, desconhecidos quaisquer desvios da rotina diária de treino e com dez dias de isolamento pelo meio, a vacinação completada há mais de um mês – enfim, um daqueles casos.

Tentava pôr-me no lugar dele quando uma pergunta do pivot me trouxe de volta a este admirável mundo novo:

- Que mensagem é que gostaria que, ou que conclusão, que lição é que gostaria que as pessoas mais da sua faixa etária, e mais jovens, até... entre os 15 e os 30 – o Frederico tem 29 anos – que lição gostava que retirassem desta sua realidade? Que é que gostava que aprendessem e que mensagem é que gostaria de deixar a essa faixa etária da população?

(nota: isto é uma transcrição)

Ainda agora, no instante em que escrevo o que aqui vai, estou sem saber o que me estarreceu mais: se a inenarrável candidez da questão, se a civilidade e tacto diplomático da resposta. Estou que, no lugar do Kikas, no mínimo dos mínimos o tinha boamente mandado tomar nos entrefolhos.

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