O novo coronavír... quer dizer, o novo presidente do Benfica

O noticiário da SIC abriu assim: Rui Costa é o novo presidente do Benfica. Rodrigo Guedes de Carvalho imprimiu à coisa aquela nota pausadamente melodramática que tem vindo a aprimorar nos últimos tempos. De forma grave, com a voz grave. Números redondos, dos primeiros 50 minutos do telejornal, uns bons 40 foram dedicados a este assunto. Às tantas, fez-se um directo. No centro do ecrã, num encarnado impecável, fitando-nos de esguelha, um palanque. Em fundo, o relvado do Estádio da Luz, vazio e melancólico. Rui Costa apareceria, dizia Rodrigo, "a qualquer momento" - para falar à "nação benfiquista". Foi tenso. Em voz-off, o pivot e um comentador de futebol enchiam um chouriço ou dois, para matar o tempo. E o palanque ali, cada vez mais vermelho. Um minuto mais, sessenta segundos inteiros. Isto em televisão é mais. Mas o eterno camisola 10 lá apareceu, vindo do canto esquerdo da televisão. Não sei bem se flectiu, se basculou - a gíria futebolística tem que se lhe diga - mas lá se instalou, de sobrolho vincado, de calças de fato vincadas, atrás do patusco palanque. O que disse, esqueci. Umas banalidades de circunstância, qualquer coisa para descalçar a bota. A bota. A bota... O Rui Costa a calçar as botas, a ir lá para dentro, os holofotes acendem-se, joga-se o prolongamento dos quartos-de-final do Europeu, o ano é 2004, e aí vai Rui Costa, a cabeça levantada, a bola colada ao pé direito, a liderar o contra-ataque, os ingleses às arrecuas, o bruáa a engrossar nas bancadas, um golpe de ombro a encontrar o espaço à entrada da área para o remate, o remaaat... O vozeirão do Rodrigo surgiu, parou a bola em pleno ar, apagou os holofotes, trouxe de volta 2021. O comentador, os ombros muito estreitos, comentava ainda o tal assunto do Benfica. Metia seriedade naquilo. Cliquei no botão do mute.
São tempos estranhos. E nem é por ver um dos maiores jogadores portugueses de todos os tempos confusa e miseravelmente enredado nos meandros de um caso de polícia que, diga-se de passagem, é como um pout-pourri do ser-Portugal: o presidente de um clube de futebol é detido para interrogatório por suspeitas de envolvimento num esquema de fraude que prejudica, em muitos milhões de euros, além do dito clube, um grupo ligado à banca e o Estado português. Ai Portugal, Portugal...
São tempos estranhos porque vivemos em estado de excepção há vários meses consecutivos. Porque ainda ontem tivemos o enésimo Conselho-de-Ministros-das-quintas-feiras a ditar novas e muito obscuras restrições. E porque toda esta inenarrável bizarria tem assentado, amplamente, na histeria orquestrada das televisões. Mas é com a vida interna de um clube de futebol que um dos telejornais de maior audiência abre. E é a essa magna questão que dispensa quase toda a primeira hora de transmissão.

Mariana Vieira da Silva foi a porta-voz de mais um conjunto de medidas muitíssimo duvidosas. Duvidosas em toda a linha: das liberdades civis à eficácia epidemiológica, passando pela realidade da sua operacionalização. Para lá da manutenção de proibições e condicionalismos que vinham de trás, emanou ontem do Conselho de Ministros que o acesso a restaurantes e a espaços hoteleiros passa a estar sujeito à apresentação do inefável Certificado Digital COVID. Em alternativa, note-se, os cidadãos poderão apresentar um teste negativo. E se nos hotéis e similares a obrigação é para os sete dias da semana, no caso dos espaços de comidas aplica-se só aos jantares de sexta e a fins-de-semana e feriados. Três notas finais a fechar este resumo: isto aplica-se apenas àqueles que queiram entrar nos restaurantes; isto tem efeito quase-imediato, já este fim-de-semana; isto tem, como não podia deixar de ser, um quadro de coimas associado - o incumprimento pode traduzir-se em multas até 500€ para clientes e até 10.000€ para profissionais.

Isto levanta, claro está, várias questões. VÁRIAS, melhor dizendo. Mas foquemo-nos - já é tarde - em duas ou três apenas.

Uma: como é que uma coisa destas se faz? E com que direito? É legítimo que funcionários da restauração ou da hotelaria (para o caso, interessa que não são profissionais da Saúde) acedam a informação clínica dos clientes? Haverá registo destes controlos (para precaver eventuais fiscalizações, por exemplo)? Que logística é que isto implicará? Passará a estar um funcionário à porta dedicado a esta tarefa? Ou quem anda a trabalhar às mesas também facilmente dá uma perninha a verificar certificados e testes rápidos? E os testes rápidos feitos in loco (a sugestão faz parte do decreto governamental), são feitos onde, com quem? E depois são guardados e agrafados à factura? E se perante um «positivo», de que forma e por quem é garantida a privacidade de uma informação que, nos dias que correm, é estupidamente sensível e estigmatizante?

Outra: como é que isto se explica? O rácio de novos casos-hospitalizações/óbitos tem melhorado francamente (sendo que nunca foi, à excepção talvez do pico da época gripal, verdadeiramente alarmante). O número de casos activos, apesar de estar a subir, é ainda baixíssimo (43.323 [fonte], ou menos de meio por cento da população residente). O número de óbitos COVID-19 por 1000 habitantes foi, no último mês, de 8,03 (fonte) (ou 0,8% do número de mortes em território nacional nas últimas quatro semanas). A taxa de vacinação está em ascensão. Aliás, a "aceleração" da vacinação é uma daquelas constantes que podemos tomar por certa nesta nova vida pandémica (a outra é que cada nova variante é "provavelmente" mais contagiosa que a anterior). É mesmo necessário avançar para uma medida deste tipo? E que significa este ataque permanente, concertado, intensivo ao lazer? Ou dito de outra maneira: que efeitos tem uma política de afunilamento agudo das nossas vidas às rotinas laborais?

E outra: como é que isto é constitucional? Por mais que se acelere, a vacinação ainda não chegou à maior parte da população. Ainda estamos longe de ter sequer metade da população com a vacinação completa (a DGS regista no seu site 3.7 milhões de segundas doses administradas). Isto não cria uma hierarquia entre cidadãos - vacinados de um lado, não-vacinados do outro? E mesmo que a totalidade da população já estivesse vacinada (o que, considerando o contexto histórico das vacinas COVID-19, é uma imagem sinistra), é legítimo negar o acesso a locais desta natureza desta maneira? A vacinação, importa relembrar, "não é" obrigatória... E sobre a alternativa de apresentação de um teste negativo - por um lado, isso representa um custo (ao cidadão, ao Estado, em termos de recursos laboratoriais); por outro, isso é, objectivamente - como o é o certificado -, um obstáculo burocrático ao acesso a espaços públicos. Que seja temporário ou circunstancial não altera, não creio, o essencial do argumento. Seja como for, sobre tudo isto paira um pivete que é tudo menos "temporário" e "circunstancial".

Nada disto é claro. Tudo isto é perturbador.
Mas ao menos ficámos a saber que o Rui Costa passou a ser o presidente do Benfica.

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