Uma peste mediática

Reli recentemente A Peste, de Camus. Impulsos epocais, enfim. Seja como for, não foi tempo perdido; reler é uma virtude e um prazer e A Peste é uma narrativa extraordinária. Parece-me relativamente inevitável identificar ali uma série de lógicas e acontecimentos que marcaram o nosso quotidiano nos últimos 500 dias, mais coisa menos coisa. Duas coisas há, contudo, que separam a narrativa camuniana da narrativa covidiana. “Duas” – escusado será dizer que não são só duas. Mas estas duas parecem-me capitais, sobretudo para compreendermos o último ano e meio que vivemos (até porque dificilmente acrescentarão o que quer que seja à leitura do texto de Camus). São elas as doenças propriamente ditas e os media.

A Peste (spoiler alert) narra um evento de peste. “A” peste. Assustadoramente fulminante, letal, horrivelmente dolorosa, símbolo absoluto da Morte. A COVID-19 é, numa palavra, nada disto.

A narrativa de Camus não contempla os media. O lado socio-comunicacional da epidemia é, no máximo, apenas aflorado. Vários motivos explicarão essa opção. Mas o que importa é isto: a COVID-19 está umbilicalmente ligada à dimensão mediática. Em A Peste, a doença impõe-se por si mesma; na narrativa covidiana, o papel dos media é instrumental. Acaso fosse possível excisar da COVID-19 o seu tecido mediático, quase nada restaria.

Claro que só analiticamente se separa uma coisa da outra. A peste camuniana dispensa, nos seus vários planos (literários, narrativos, filosóficos, clínicos, históricos), a dinâmica mediática; a COVID-19, ao invés, funda-se nessa dinâmica, é-lhe totalmente dependente.

Por mais que se insista no “desconhecimento” e no “choque” iniciais, nos possíveis efeitos a longo-prazo do vírus, no surgimento de novas estirpes cada vez mais isto-e-aquilo, no sacrossanto «princípio da precaução», na muito hábil ideia de “defesa do SNS”, por mais que se teste, se descontextualize e martele os números e se confunda infectados com doentes – por mais que se insista no que são, afinal de contas, estratégias de preservação de um clima de Medo, a COVID-19 não explica, enquanto fenómeno sanitário e clínico, nem um terço de tudo o que tem sido feito.

Nada disto é especialmente complicado. A importância de inspirar medo, por exemplo, foi aberta e publicamente defendida por vários agentes ao longo dos últimos meses. E só este mês de Julho, em Portugal, foram realizados mais de 2 milhões! de testes, segundo contas do Instituto Ricardo Jorge (link). Quanto ao conceito de “defesa do SNS”, de que me recordo ouvir pela primeira vez pela boca de Marta Temido algures durante o Outono passado, foi a pedra-de-toque da estratégia – aliás, plenamente conseguida – de desresponsabilzação governamental.

Soubemos nos últimos dias que a Austrália voltou, pela sexta! vez, a decretar um violentíssimo confinamento, com um quadro de proibições simplesmente bizarro. Já em Agosto do ano passado aqui tínhamos dado conta da brutalidade das autoridades australianas.

A vizinha Nova Zelândia, que anunciara já no início da semana o fecho das fronteiras até ❷⓿❷❷, fechou Auckland, cidade que tem aprox. 1.6 milhões de habitantes, devido ao surgimento de um “surto”... de caso positivo.

Somam-se, entretanto, mais nove casos. Ao longo do último ano e meio, a ilha registou menos de 3000 casos, isto é, foi afectada qualquer coisa como ⓿,⓿❺% da população neozelandesa. O último caso tinha sido em Fevereiro. Registam-se nesta altura nem 40 casos activos, nenhum deles grave.

Note-se que fechar Auckland inclui, entre outras coisas, cancelar todos os serviços hospitalares “não-urgentes”, proibir funerais e interromper o ensino presencial. Hoje, num protesto contra este estado de coisas que reuniu cerca de ㉌ manifestantes, quatro pessoas foram detidas. O comissário da Polícia explicou: “colocaram todos em risco” (link).

Ora, nada disto se explica em termos clínicos.

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