Domingo de votar

Eleições autárquicas, domingo de votar.
Levo já o voto decidido, não guardo a escolha para depois. Escolhi logo na sexta, enquanto tomava o café na esplanada. Voto naqueles que buzinaram mais e mais alto e durante mais tempo e com a maior caravana de automóveis. Só lhes decorei a cor das bandeiras. Espero que o boletim seja a cores.
Se, a bem da fazenda nacional, o boletim for a preto-e-branco, faço um-dó-li-tá. Mas em surdina. O acto é solene e impõe-se algum decoro.

Numa eleição nacional, até ver, nunca fui capaz de votar em alguém. Como me chega o boletim, assim o devolvo, salvo que dobrado religiosamente em quatro e não sem antes ir para trás do biombo, guardar um segundo ou dois para despistar e só depois começar a dobragem.
Isto é, com excepção dos referendos, só em autárquicas é que botei uma cruz. Mas isto sou eu, que venho de uma zona urbana, onde o distanciamento (de classe) social já era lei antes da pandemia. Quem cresce e vota numa zona menos urbanizada, testemunha vezes demais o triste espectáculo da pequena "ascensão política". E isso altera tudo. Se eu, entre um anonimato e outro, me vou guiando por questões de escala e quejandos, o cidadão da aldeia, perante tal avesso do anonimato, vê-se moralmente impedido de votar. Porque conhece a peça. E, como a conhece, não a compra. Esta dinâmica redefine a simetria: àquela concretude repelente da junta de freguesia, contrapõe-se a abstracção longínqua e esfumada dos candidatos nacionais. Neste quadro semântico, estes últimos surgem mais dignos. Tão dignos, aliás, que até parece que merecem um voto.

De uma maneira ou de outra, o que estas autárquicas reflectem e amplificam é a absoluta despolitização da sociedade. E sim, há cidadãos que estupidamente optam por ignorar a importância da Política - como estrutura jurídica e comunitária, como intermediário financeiro e económico, como símbolo. Mas apetece-me dizer que a maioria das pessoas sofre por erosão, exclusão e nojo. Erosão da retórica mediática e dos jogos de bastidores. Exclusão da arquitectura político-partidária que mija todos os dias em cima do bem-comum e do futuro. Nojo dos compadrios indesmentíveis que contaminam tudo.

No domingo de votar, cabe-nos votar.

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