O cerco mediático: dois sinais (e uns pozinhos)
Duas coisas há que entram pelos olhos adentro: que esta pandemia é um fenómeno eminentemente mediático; e que os media, genericamente falando, têm feito de tudo para manter o lume vivo.
Isto é dizer, respectivamente, que:
- não fora a acção específica da comunicação social (sobretudo a televisiva e a online) e tudo seria completamente diferente; e que
- os media têm optado por noticiar (a martelo) umas coisas e calar outras (ou pelo menos dizê-las muito, muito baixinho), sem que se vislumbre nessas opções critérios de imparcialidade, objectividade ou isenção. Ao invés, o que transpira desse posicionamento é exactamente o inverso: parcialidade, subjectividade, conveniência narrativa.
Isto é tudo impressão minha, não o nego. E, num tempo em que as bocas andam tão cheias de Ciência, fica mal não acompanhar estas afirmações com um estudo norte-americano (ou algo do tipo). De facto, esta treta das impressões não vale nada e importa muito pouco. São coisa arcaica, pré-científica, feita só de observar sem método e de interpretar sem autoridade. Assentam boamente no que vamos lendo e ouvindo, no que vamos testemunhando no café, na paragem do autocarro ou no dia-a-dia no escritório, e delas quase sempre nada resta para fazer prova científica ou para documentar a História dos livros.
Enfim, merdas.
Registo, não obstante, dois sinais que apontam ao que aqui vai dito:
1. hoje que a obrigatoriedade do uso de máscara em espaços públicos ao ar-livre deixou de estar em vigor, as rádios e jornais, mas sobretudo as televisões, passaram o dia a enfatizar, por todos os meios e mais alguns, que: a DGS recomenda que se mantenha o uso quando há aglomeração de pessoas.
Ora, fazem-no com o mesmíssimo rigor com que ignoraram, olimpicamente, meses a fio, que a lei que regulamentava o uso de máscara na via pública definia a sua obrigatoriedade apenas e só nos momentos em que fosse impossível manter o distanciamento de segurança. A tal ponto que, aquando da apresentação das diferentes fases do chamado "plano de libertação", António Costa, à terceira ou quarta insistência dos jornalistas presentes (preocupadíssimos com o cenário dantesco de ruas repletas de desmascarados tresloucados a tossir e a espirrar desalmadamente sobre os seus semelhantes), se viu na obrigação de esclarecer - de esclarecer os jornalistas, bem entendido - que a obrigatoriedade do uso de máscara tinha um quadro específico e que não era indiscriminada.
A linguagem tem uma força bastas vezes desvalorizada. E foi o primeiro-ministro quem, numa conferência de imprensa por alturas do Natal passado, deu o mote à confusão ao declarar o uso obrigatório de máscara na rua - e omitindo intencionalmente a ressalva prevista na lei.
E como é que sei que o fez intencionalmente? Não sei. Podia argumentar que, nessa ocasião e noutras que se lhe seguiram, o fez (omitiu a ressalva) reiteradamente; que era desejo público do Executivo que o uso de máscara na rua se generalizasse; que um político experimentado e hábil como Costa tem no domínio do discurso a sua ferramenta de trabalho por excelência - e que, portanto, era impossível que não tivesse perfeita noção do que estava a comunicar (ao calar). Podia argumentar isto e algumas coisas mais; mas começo a fartar-me de hesitar, de dar sempre o benefício da dúvida, de duvidar constantemente do meu discernimento, de cuidar sempre de examinar e criticar tudo o que digo, penso e escrevo - quando à minha volta não identifico o mesmo brio, a mesma honestidade intelectual. E por isso fico-me por aqui: sei que António Costa omitiu intencionalmente a ressalva prevista na lei.
Como sei que os media, por outros motes, numa outra moldura pragmática, afinaram pelo mesmo diapasão. E que agora, de forma tão contrastante, se mostrem tão zelosos ao frisar, sublinhar, relembrar, acentuar, alertar que - muita atenção - apesar do fim da obrigatoriedade legal, a DGS recomenda que tal e tal. Arre! o raio que os parta.
Isto é o primeiro sinal de uma agenda.
2. (aviso: este ponto terá alguns números) a pandemia vitimou, felizmente, um número relativamente baixo de pessoas. Fazendo um cálculo grosseiro do número de mortos associados à COVID-19, fica-nos um valor na casa dos 30 mortos/dia, número que, por sua vez, representará aproximadamente 10% da média diária de óbitos a nível nacional ao longo do ano.
fonte: SICO (aqui)
Se considerarmos que, entre o último dia de 2020 (6.906 óbitos) e o primeiro dia de Março do corrente (16.351 óbitos), se registaram aproximadamente 10 mil dos menos de 18 mil óbitos acumulados desde o início da crise - e que, antes disso, só em Novembro e Dezembro se registaram praticamente 4.400 óbitos (óbitos até 31/10/2020: 2.507) - ficamos, números redondos, com uma média diária de óbitos fora do Inverno e da tradicional época gripal que é cerca de um terço daquele valor inicial - algo como nove falecimentos por COVID-19 por dia.
fonte: DGS (aqui)
Ora, nas últimas semanas foram frequentes os dias em que se registaram óbitos diária à volta dos 10-15, acima daquela estimativa extra-Inverno. O que é interessante, considerando que estamos no Verão.
O quadro acima (que indica o número acumulado de óbitos/recuperados/activos ao longo do tempo) mostra-nos uma outra coisa: que o número de casos activos em Portugal (i. e., «novos casos - [óbitos+recuperados]») nunca foi tão alto desde inícios de Março.
Em resumo: o número de óbitos e o número de casos activos de Julho a esta parte foram - tendo como bitola os números da pandemia fora dos meses críticos do Inverno - altos.
E, no entanto, é notório que a COVID-19 perdeu relevância mediática: foi secundarizada nos alinhamentos dos telejornais, deixou de fazer manchetes nas bancas, e mesmo o patusco boletim diário da DGS deixou de dominar os feeds noticiosos. No Público do passado sábado, por exemplo, apenas havia uma (1) notícia dedicada à pandemia - uns quatro ou cinco parágrafos em página ímpar com uma estatística relativa à eficácia da vacinação.
Este é o segundo sinal: o massacre mediático que vivemos até aqui foi uma opção das redacções cujos critérios não encontram fundamento nos números da evolução da pandemia, que supostamente se impunham à agenda. Foi outra coisa qualquer.
Termino com outras duas notas:
i) a propósito dos números que sintetizei acima - como é que podemos explicar esta evolução estatística (de casos activos, internados, óbitos) face à franca progressão da vacinação dos últimos meses?
fonte: v. acima
fonte: DGS (aqui)
ii) foi há pouco noticiado que um grupo de "manifestantes negacionistas" perseguiu e insultou Ferro Rodrigues enquanto este tomava uma refeição num restaurante. O muro de unanimismo, hipocrisia e censura que se ergueu em torno da resposta governativa à crise pandémica é sintoma de uma sociedade profundamente doente. Perseguir e insultar, alarve e cobardemente, em grupo, um septuagenário na sua vida civil não o é menos. A infantilização inerente, entre outras coisas, à omissão intencional de Costa quanto à lei da máscara encontra respaldo neste tipo de evento.
Quando a cobertura mediática de uma qualquer manifestação contra as medidas de combate à pandemia decide mostrar os protestantes como meros patetas acéfalos que não inspiram senão escárnio e desprezo, é nosso dever tentar ver para lá do corta & cose da edição jornalística e dos enviesamentos dos clips descontextualizados e escolhidos a dedo. Mas, mesmo tendo em conta que apenas se conheceram uns segundos confusos de uns vídeos amadores, atacar um homem desta maneira é, simplesmente, vil.