O surto de Santa Cruz

1 Um surto de COVID-19 em Santa Cruz foi hoje tema de abertura do noticiário da hora de almoço da SIC e SIC Notícias. E isto é, por si só, relativamente notório, até porque parece certo que de há umas semanas a esta parte a pandemia vem sendo secundarizada nos alinhamentos. Os tempos do monotematismo neurótico e massacrante chegaram ao fim? A tragédia afegã terá sido o princípio do fim da pandemia?
De uma maneira ou de outra, o que me parece especialmente interessante neste surto de Santa Cruz é que ele encaixa como uma luva na narrativa dominante. Os novos casos terão tido origem nos contactos tidos entre jovens em festas na praia e em bares. Isto é o equivalente, nos dias que correm, a roubar a caixa de esmolas da paróquia ou a escarrar na sacrossanta bandeira nacional. De manhã eram 29, à hora de almoço eram já 33. Amanhã, só deus sabe. Há "caso", claramente.

(Atente o leitor na fotografia escolhida pelo site da SIC Notícias para ilustrar a coisa. O Barthes teria uma ou duas coisas a dizer sobre esta mensagem.)

O noticiário abre, então, com isto; faz-se sem mais delongas um directo da praia onde um repórter, de máscara no rosto e senho franzido, descreve a indecência ali cometida, após o que a pivot, de volta ao estúdio, carrega no tom dramático ao introduzir uma peça de minuto e meio que elenca as ramificações possíveis e imaginárias que podem medrar a partir daquela insidiosa semente do Mal.
Em casa, sobre a toalha branca dos almoços de Domingo, o pater familias, com a esposa ao lado a benzer-se nervosamente, e entre garfadas de guisado, amaldiçoa os "jovens", indigna-se com aquela imoralidade das "festas" e o raio que os parta e acaba com uma mirada ameaçadora aos dois filhos adolescentes:
- Eu que saiba que andais metidos nestas poucas-vergonhas. Eu que saiba.

2 O surto de Santa Cruz ascende, até ver, aos 33 casos positivos. Pergunto-me se três dezenas de novos casos representa um desvio significativo daquilo que seria a progressão "natural" da pandemia. Isto é, é garantido que, não fora aquelas festas, uma nova trintena de casos não surgiria naquela região? Esta dúvida será, estou certo, além de instintivamente mal-intencionada, um sinal inequívoco da ignorância asquerosa da minha pessoa. Aqui ficam desde já as minhas mais sinceras desculpas.
Mas vejamos: tem-se registado uma média diária superior aos 2000 casos; o problema está que estes 30 resultaram, assim no-lo dizem, de "festas em bares na praia". E isso não é, de todo, aceitável. Acaso fossem 30 infectados resultantes de um autocarro urbano sobrelotado de assalariados de meia-idade em trânsito casa-trabalho-casa e tudo seria diferente - aí seria, não há que ter dúvidas, aceitável.
Mas dir-me-ão ainda: a questão é que estes 30 são "apenas um caso" entre muitos; que a fatia de leão dos outros dois milhares de novos casos diários terá origem, também - por certo! -, em Festas de Jovens & similares. Esta lógica, de resto, é parte integrante da narrativa dominante - é o "facilitismo", é o "relaxamento" das medidas.

3 O que é um "jovem"?
Não tentarei responder. Um "jovem" será várias coisas, tantas quantas as perspectivas metodológicas ou disciplinares que adoptarmos. Mas esta evidente dificuldade semântica não tem sido travão a uma inclinação descabelada ao estereótipo mais primário. Como se estivéssemos a falar de um grupo perfeitamente identificado, perfeitamente circunscrito, perfeitamente homogéneo. Por falar em "facilitismo" (de linguagem) e "relaxamento" (de critérios)...
O cúmulo desta dinâmica é a iniciativa de vacinar os "jovens" em horários mais tardios e com DJ presente. O processo de infantilização inerente a comunicações ou iniciativas deste tipo é escabroso. E esse processo (em rigor, trata-se de uma estratégia governativa) não aponta, obviamente, apenas aos "jovens"; alcança toda a população de todas as idades. É um absurdo, ponto final. Seria como avançar com a vacinação das mulheres (todas, porque são todas iguais) em shoppings em época de saldos, a dos quarentões em cafés com SportTV, a dos velhos junto a tabacarias com oferta de raspadinhas e a das velhas (um sub-grupo muito bem caracterizado pela bibliografia) em pastelarias de bairro com a presença do Malato e do Goucha. Ah, e a das crianças de 12 anos num evento de Anime no Pavilhão Atlântico.

Tenham. Noção.

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