A ditadura da (vacinação) COVID-19
1. Qual é a melhor maneira de descrever o grau, ou o tipo, de obrigatoriedade da vacinação COVID-19 na generalidade dos países ocidentais? Trata-se de uma obrigatoriedade indirecta ou de uma obrigatoriedade velada? Subentendida ou oficiosa? Envergonhada ou desavergonhada? Prática ou por inerência? O fenómeno levanta, como se vê, questões semânticas de alevantadíssimo interesse. Note-se, porém, o seguinte: a discussão será sempre, sejamos francos e rigorosos, a da adjectivação da obrigatoriedade. Porque que é obrigatório não se discute.
2. Em Portugal tivemos o uso generalizado do chamado «certificado». Só os cidadãos com certificado (leia-se, os cidadãos certificados) podiam, por exemplo, jantar no interior de um restaurante entre sexta-feira e domingo ou, outro exemplo, pernoitar numa unidade hoteleira. Havia, bem sei, a alternativa do teste negativo, mas o essencial é isto: a cidadania conheceu (conhece ainda) uma hierarquia: os que têm certificado e os que não têm certificado. Aqueles são cidadãos respeitadores e, mais importante, respeitáveis, na posse plena dos seus direitos; estes são outra coisa qualquer de inferior, de subalterno, inequívoca e higienicamente condicionados no usufruto dos seus direitos de cidadania, sujeitos, no mínimo, a pagar um teste para poderem ir a um restaurante, um hotel, etc. Esta hierarquização não foi precedida de nenhuma alteração constitucional (não calhou); ela surgiu, com toda a naturalidade, do quadro excepcional que a gestão da crise pandémica impôs e tratou de fazer perdurar até ao dia de hoje.
3. A par de zunzuns de empregadores que, entre outras coisas, andavam a querer saber quais os empregados que tinham ou não a vacinação COVID-19 completa, foram surgindo, aqui e ali, notícias sobre queixas e recusas de sindicatos em relação à ideia peregrina de estender aquela lógica de condicionamento ao trabalhar. Dito de forma simples, o direito ao trabalho (uma expressão carregada de contradições internas) ficava também ele sujeito à apresentação do bendito certificado. Em França falou-se disso pública e institucionalmente, apenas para (até ver) não se concretizar nada. Mas Itália não se ficou por sondagens ad-hoc ou por declarações de intenção...
Itália decretou a obrigatoriedade do certificado (lá diz-se «certificazione verde»). Quem não tem um «passe verde», tem de apresentar teste negativo a cada dois dias. O teste, como não podia deixar de ser, é feito a custas do empregado. Se não tiver nem certificado nem teste, o empregado tem falta injustificada (com todas as implicações laborais que isso acarreta) e pode mesmo ser multado.
4. Este tipo de decisão governamental é, obviamente, uma aberração. A defesa e o incentivo públicos e governamentais da vacinação COVID-19 são legítimos e perfeitamente aceitáveis. Isto é inenarrável. O caminho que percorremos até chegar a estes cúmulos de absurdo foi assustadoramente curto e assustadoramente arbitrário. Urge recuar. Urge travar isto. Lê-se no snip acima que 81/100 italianos com mais de 12 anos têm já a vacinação completa. A subalternização da cidadania a um certificado circunstancial de vacinação é inaceitável; fazê-lo quando ainda nem sequer foi dada a hipótese a toda a população abrangida de cumprir os requisitos para a obtenção de um certificado (como aconteceu em Portugal) é incompreensível; fazê-lo quando a larga maioria da população já cumpriu o plano de vacinação definido é ilógico.
5. Mas o vulcão está activo. A lava, imparável e mortal, vai descendo lentamente, cegamente, inexoravelmente. E cobre tudo, queima e petrifica tudo, leva tudo à frente. Nada se pode contra um vulcão em erupção. Não se trava - toda a gente sabe - um rio de lava.
6. Do Norte da América e dos antípodas chegam-nos, semanalmente, novos patamares de radicalização. Cada um desses ecos terá, certamente, a sua pragmática específica. Mas a tendência geral é clara.