O OE para 2022 e duas notas para memória futura

Foi hoje feita a apresentação pública da proposta governamental para o Orçamento do Estado do ano que há-de vir. Ouvi, em directo, com toda a atenção. Mas, depois de um preâmbulo arrastado em que Leão, monocórdico, descreveu um mundo paralelo para onde seria bom emigrarmos todos (onde os hospitais têm médicos e enfermeiros até ao tecto, onde as famílias dão um pontapé numa pedra e saem de lá milhões em poupanças), logo os indexantes, os rendimentos colectáveis, os englobamentos, os PEC e os IEC e os mais que nem fixei - me deram um nó. E fui progressivamente ficando como alguém que se inicia num novo idioma e se aventura já numa primeira conversação: depois das saudações iniciais, que fazem tudo parecer tão fácil, fui perdendo o fio à meada e fui caindo na real: ainda não sou proficiente nesta língua estrangeira. Porque é de um sentimento de exclusão - um sentir-se estrangeiro - que se trata. O assunto é necessariamente técnico, não discuto isso. Mas não bate certo. Feitas as contas, é a nossa vida que ali se maquina.
Mas mais: fica, ano após ano, a impressão de que o concerto político-parlamentar (aquele que depois define se a proposta de Orçamento é ou não aprovada) é muitíssimo mais terra-a-terra. De resto, logo a seguir ao almoço e já o PC e o Bloco anunciavam que, tal como está, aquilo é para chumbar. E nem é o chumbarem ou não; é o falarem de um documento extensíssimo e hiper-codificado como se i) o tivessem lido e ii) o tivessem compreendido. Vem à mente os senhores do Nobel. Vi no site da academia sueca que o júri que decide a atribuição do Nobel da Literatura faz a leitura das obras a concurso entre Junho e Agosto. Entre Junho e Agosto! Mas querem-me convencer que alguém é capaz de ler a obra de cinco grandes autores em tão poucas semanas? E nem é só o ler; é ler para decidir o maior galardão da literatura mundial; é comparar, é analisar, é digerir, é compreender. Nem de um, quanto mais de cinco!


Mas isto diz-se o que se quer. António Costa proclama, com um certo vigor papudo, que este é um Orçamento do caraças para os "jovens" e para a "classe média". Não quis fazer figura de parvo e perguntar o que são, a que correspondem, os tais "jovens" e a tal "classe média". Fiquei com a impressão que a turma toda sabia do que se estava a conversar e retraí-me. Optei por fazer como os outros todos - e fiz de conta. Acabei por me consolar com a noção de que também isto é um contributo para a ordem e a estabilidade político-sociais. Andar sempre a fazer perguntas é um factor indesejado de instabilidade e de certeza que aborrece os "mercados". E ai de quem irrite os "mercados". Diz que dá cabo da nossa (?) "credibilidade externa". Seja como for, anotei (a caneta) no caderno diário as duas expressões: "jovens", "classe média". Só para não me esquecer. Depois, daqui a um ano ou assim, volto a esse apontamento.

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