Um povo que se demite em bloco
Há umas semanas atrás, o alerta que se segue teria sido percepcionado e veiculado nos media como "sinal claro" de "relaxamento" e "incumprimento" e teria levado especialistas e cidadãos comuns a defenderem a "necessidade urgente" do "endurecimento" das medidas de controlo da pandemia.
Mas o tempo é já o de um pós-pandemia qualquer. E a precariedade histórica, sistémica, estrutural do SNS - reduzida ao longo de meses a produto exclusivo dos "relaxamentos" e dos "ajuntamentos" - voltou ao seu lugar costumeiro nos alinhamentos dos telejornais: ensanduíchada entre a última guerra intestina do CDS-PP e os golos dos jogos de futebol da véspera.
Setúbal, Faro, Évora, Vila Franca de Xira - a lista aumenta a cada novo dia. Entretanto, discute-se o Orçamento do Estado. E, depois de mais de ano e meio de crise sanitária, de uma segunda "gripe espanhola", de #vaificartudobem, #fiqueemcasa e o diabo a sete, de bocas cheias de "A Saúde em primeiro lugar" e "Vamos salvar o SNS" - depois de toda essa insuportável, insustentável narrativa, nem um dos grandes tópicos da agenda orçamental diz respeito ao SNS.
E em Setúbal, onde a Ordem contou 47 macas nas Urgências, mais de 80 médicos apresentaram a demissão.
Mas a vacinação chegou - hosana! - à marca mágica dos 85%. Proclama-se, não sem bazófia, que Portugal é o líder mundial na matéria. Há que tempos que o patriotismo não se mostrava tão bem nutrido. Bem dizia o Brilhante Dias que "o covid até foi porreiro, pá".
Não chegou aos 85%, mas quase. Rui Costa, outrora um futebolista admirável e respeitável, passou este Domingo a ser só mais um desses presidentes que inspiram um vago nojo. A reaparição descarada de Luís Filipe Vieira apenas veio evidenciar o evidente: o agora desmistificado n.º 10 tresanda a vieirismo. É a chamada "solução de continuidade": mudar tudo para que fique tudo na mesma.
É Vieira a sacudir a água do capote e a ensaiar o regresso (é uma questão de tempo), é Rendeiro a fugir à sentença de prisão para um país sem acordo de extradição (e a anunciar a coisa com descaro no blog pessoal) e é Armando Vara, com um bronze do caraças, a sair em liberdade com metade da pena por cumprir (ao abrigo de uma notável lei covidiana).
Entre estes três tipos contam-se uns bons milhares de milhões desviados para parte (in)certa. Mas os três pastorinhos não valem apenas pelas suas retorcidas especificidades. Valem enquanto sinédoque - do dirigente futebolístico, do dirigente político-partidário, do banqueiro.
Mas para isto não há vacina que nos valha. Resta-nos, quem sabe, a demissão em bloco.