Falta de qualidade ao triângulo, ou Uma coisa que tinha escrita e já nem me lembrava

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É fácil perder a noção do tempo. É difícil definir noção de tempo.
Duvido que haja uma ligação entre as duas coisas.
Posto isto, e sem necessidade, digo que o que segue é coisa já com algum tempo.
Velha? Talvez sim, talvez não. Nova? Talvez sim, talvez não.
Há muita coisa difícil de definir. Uma delas é a utilidade de definir.
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Ao que tudo indica, digo tudo mas podia dizer quase tudo, a falta de qualidade impera. E digo impera isoladamente, sem acrescentar nada mais, mas, em prol de uma maior precisão, achego que impera fundamentalmente no meio de comunicação vigente: claro está, a toda-poderosa televisão. Diz-se dela que é o quarto poder, mas não se enganem os que não vejam além da numeração presente na designação, só se diz dela que é o quarto dos poderes porque veio cronologicamente em último lugar, pois, em rigor, teríamos de a classificar de primeiro poder, sendo certa e comprovada a sua primazia e determinante influência sobre os restantes três.
Bastam alguns minutos em cada um dos canais portugueses. Actualmente, são vários e pouco variados os programas de entretenimento do horário nobre, especialmente nos dois canais privados, porventura os piores do quarteto, sendo praticamente ponto assente que, do grupinho, não haja um que se aproveite. Perante o que se acaba de dizer, é provável que surja uma reacção de defesa do segundo canal público, que na sua grelha sempre tem os documentários interessantes, as séries cómicas aclamadas, os intocáveis Simpsons, e por aí fora um pouco mais. Pois sim, mas é facto indesmentível que é o canal que tem, de longe, menos telespectadores, coisa que não se ficará a dever, certamente, ao acaso, não querendo com isto dizer nem um bocadinho mais do que exactamente disse, ou ao provincianismo secular, ou a qualquer outro factor extrínseco à estação.
Mas retomando, bastam alguns minutos em cada um dos canais portugueses. Aqui há dias, tive o privilégio de ouvir uns bons dez minutos do, salvo erro, Festival Europeu da Canção Júnior, durante os quais fui premiado com um espectáculo banal e entediante emoldurado por dezenas de elementos estranhos à essência musical propriamente dita, desde os incontáveis e prazenteiros dançarinos, aos incessantes e bruscos movimentos das câmaras, tudo aparentemente destinado a despistar a minha atenção do que realmente ali se estava a passar: um(a) miúdo(a) a cantar benzito, ou a desafinar pouco, uma letra vulgar sobre um fundo de má música invarialmente fabricada em computador. Isto no canal um. Na sic e na tvi a conversa é outra, ainda que, no fundo, não seja tão diferente assim, a ponto de quase vir a propósito lembrar aquela popular frase, que muda o balde mas a merda é a mesma: programas ou espectáculos da realidade (ou reality shows) mesclados com provas musicais, numa esquisita amálgama de todos os formatos já dados a conhecer até hoje, recorrendo a gente fatalmente-normal, grandes irmãos q.b., algumas figurinhas publicadas metidas ao barulho e galas cheias de coisa nenhuma. Na tvi, nome comprido: Cantando e dançando por um casamento de sonho. Na sic, nome bilingue, mais american, mais sonante: Família superstar. Na tvi, está fácil de ver, cantam e dançam. Na sic, talvez por humildade, talvez por falta de lembrança, só cantam. Na tvi, trata-se de amor televisivo, proficuamente regado de baba, ranho e amo-tes. Na sic, tratam-se de laços de sangue televisivos, devidamente temperados com lágrimas e gritos. Em ambos os casos, o júri, escolhido não se sabe com que critério, é manhoso.
Importa, por ora, frisar um factor que é observável nos três exemplos supra-mencionados: o público presente no estúdio é parcial, ou dito de jeito mais simples, e até mais rigoroso, o público presente no estúdio é declarada e quase totalmente composto por parentes e amigos. Este facto é especialmente determinante nos dois programas das televisões privadas. Em virtude disso, para equilibrar, junto um quarto exemplo: Operação triunfo, da rtp um. Aplique-se a este último aquilo que, melhor ou pior, já se foi dizendo dos restantes, e, simultaneamente, secundarize-se o exemplo que primeiramente se usou para o canal estatal, o do tal festival júnior, sem, no entanto, esquecê-lo. Obrigado. Retomando: o público é familiar e amigo dos que sobem ao palco, como tal, adorarão, como de facto adoram, tudo o que eles fizerem, independentemente da qualidade real, que é, em abono da verdade e em termos gerais, fraca. Sublinhe-se que, como toda e qualquer generalização, a que se acaba de registar tem inerente a salvaguarda das valorosas excepções, confirmadoras da triste regra.
Será pertinente referir uma outra condicionante que importa considerar, nomeadamente a dos intensos e concorridíssimos castings, ou, em bom português, castingues prévios que estas auto-denominadas “grandes produções” levam a cabo, os quais, além de supostamente comprovarem a particular qualidade dos escolhidos, pop stars em potência, anónimos talentos pescados de entre uma multidão de gente determinada e também muito capaz, servem para criar e reforçar a aura de adoração e condescendência à volta dos que, dali em diante, entrarão, duma maneira ou de outra, nas nossas casas, por mais zelosos que sejamos na defesa da integridade espiritual do nosso lar.
Mas, então, o que sucede? Os eleitos cantam para um público que não os avalia friamente, que os bajula, até, ademais confortáveis na legitimação da falada almofada que são os concorridos castings. Aplausos com fartura, gritos ensaiados e elogios descontrolados, estes últimos muito presentes também no discurso dos qualificados júris. Ainda que seja obviamente injusto apelidar todas as performânces de fracas, ressalva especialmente aplicável à tal operação triunfal, é legítimo afirmar que nenhuma atingiu, até ver, um grau de qualidade que justificasse apreciações tão hiperbólicas como aquela que, banzado, acabo de ouvir, saída da boca de um renomado cantor, compositor e produtor português, que responde pela ditosa e bem portuguesa graça de Tozé Brito, cujo define como “perfeita” a aflitiva actuação que acaba de findar, desculpe-se-me a redundância. Enfim, isto vem mesmo a calhar. Aliás, em solene homenagem ao amigo Tozé, digo que bonito, bonito, é o novo disco do Tozé Brito. Note-se que, com isto, não só elogio este afamado senhor da música, por si só já assaz conceituado, e que portanto vê reforçado esse epíteto com o seu brilhante trabalho enquanto avaliador sério e rigoroso dos “novos talentos portugueses”, como também se omite aqueloutra versão do trocadilho, tão indecente quanto impertinente para a conversa, mas que, verdade seja dita, para desanuviar, ou, em bom português, desaliviar, até calhava bem. Mas não, ora essa, nada de ordinarices, de despautérios, para vulgarões já temos os referidos shows. Bonito, bonito, é o caralho a bater no pito, pronto, já disse, já se desaliviou. Passado o devaneio, voltemos a concentrar a nossa atenção no tema da presente tese, de seguida formulado e sintetizado em forma de pergunta: temos vindo a ser espectadores, cúmplices e/ou promotores de uma preocupante falta de qualidade, em particular no meio musical e através da grã-mestra mui-formosa televisão? Que potenciais e reais efeitos tem, a confirmar-se, este fenómeno? Andaremos a observar impávidos e serenos, a colaborar e/ou a motivar uma desonrosa falta de qualidade noutros meios e através de outros veículos formadores de personalidade? Só mais duas, numa, mesmo a finalizar: qual é a origem deste fenómeno e quais as soluções para as suas consequências?
(...)
Acabo de reler o que escrevinhei até este ponto e parece-me razoável terminar com um parágrafo que arrebanhe as ideias fundamentais que tive a infundada presunção de transmitir e que vá objectivamente ao mote que esteve a montante do presente rabisco, do qual me encontro, já agora adianto, no juzante. Antes de continuar, devo frisar que é bom fazer uso, ainda que desregrado, ainda que descarado, ainda que errado, de certas e determinadas expressões que, por estes dias, têm vingado na caixinha mágica, truque dos mais eficazes para conseguir simultaneamente a atenção e aprovação dos ouvintes, espectadores e leitores. Assim, com o montante, com o juzante e com os estrangeirismos entretanto já largados, vou bem lançado, a minha assistência não despega os olhos destoutro fascinante ecrã. Mas, com toda esta balhana, aliás sem piléria nenhuma, já levo uma boa metade do parágrafo ocupada e ainda não fiz aquilo que comecei por anunciar, de modo que, sem mais delongas e demais cortes no fio da meada que aqui vou escrupolosamente desfiando, passo a sintetizar a minha indignação: de há uns tempos a esta parte, as multidões de telespectadores portugueses têm vindo a assistir a espectáculos televisivos que, à mistura com tricas caseiras, paixões declamadas e histórias de vidas-comuns, dão azo a que pessoas com capacidade duvidosa cantem perante um público que, como é tradicional dever de parentes e amigos, os congratula e apoia incondicionalmente, sem restrições, sem exigência, com um certo descontrolo, até, porventura inevitável no calor dos focos e microfones e decorrente da legitimação pretensamente técnica de júris e castingues, o que, por sua vez, parece levar as já faladas multidões a, do lado de cá do receptor, se verem destituídas do seu já muito abalado sentido crítico e a, fatalmente, consagrarem esses joões e essas joanas como se estivessem perante novos sinatras e novas amálias, como se a arte musical não fosse muito além do que desafinar poucas vezes, ser bonito, elegante e efusivo em palco. Numa palavra: nivelando por baixo, dispensando a tão-desejável cultura de exigência, engolindo qualquer coisa. Que fazer, camaradas? Pergunto e sei que, para cada um, servirá como resposta o seguinte: pegar no telecomando, supremo símbolo da vida moderna, e dar-lhe dos melhores usos que ele proporciona, isto é, desligar o televisor mexendo pouco mais do que uma palha. Mas isso seria fugir à questão, seria menosprezá-la, seria, note-se, não compreender plenamente o conceito de responsabilidade individual que tanto devemos defender e, acima de tudo, protagonizar.

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