Aguaceiro

Noite de aguaceiros. Os estores estão subidos, a janela está sendo fustigada pelos pingos grossos. A luz amarela dos candeeiros da rua dá às gotas pegadas ao vidro um corpo bestial. Observo a minha mão direita, as suas unhas e pregas, os riscos das juntas das falanges, seus pêlos e suas veias, tudo enquadrado na janela de luz amarela, tudo enquadrado como numa fotografia. Vejo tudo a preto e branco, tudo de papel, tudo irreal. Digo vejo, mas devia dizer olho. Olho, então, a mão. Olho, mas não vejo nada. Olho, mas já me esqueci da mão. Estou na cama, mas já não estou deitado, estou lá fora no telhado, a ver-me através do reflexo da vidraça, a ver a palma da mão quando ainda há pouco lhe via as costas, a ver-me olhar as costas da mão enquanto lhe vejo o branco da palma. Estou no telhado e chove cada vez mais, mas não estou molhado. Fico espantado ao dar conta de que não estou espantado. Nisto, viro os olhos para o interior do quarto e vejo-me já a dormir com a mão direita adormecida sobre o edredão. Rodo o tronco na direcção do mar e tento adivinhar-lhe a cor. Sinto nos pés desnudos as curvas das telhas, a sua textura áspera, o seu cheiro de terra, e sinto-as mornas. Um arrepio percorre-me o corpo, escorrego nas telhas cor de barro, sinto uma vertigem e entrego-me à queda, subitamente certo do meu destino, rendido e aliviado.
Eis-me a sobrevoar vertiginosamente o vale verde, cone imenso de árvores e mato até às ondas negras do mar. Ao fundo, bem ao fundo, uma pista iluminada na areia da praia, ali posta para eu aterrar. Uma multidão de cegos lá me espera e me chora numa reza ensaiada, num luto de traje, numas lágrimas de plástico, nuns sentimentos estrangeiros, e é então, já quase a aterrar, que, revendo isto (toda a minha vida vi isto), me revolto e não baixo, faço força nas omoplatas para seguir o vôo, afastar-me o mais que possa daqueles vultos, dar-lhes as costas, distanciar-me deles quanto consiga, voar para sempre sobre o mar. Cerro os dentes e aperto os punhos.
Mas os músculos falham-me. A lucidez abandona-me à medida que penetro o oceano.
Já não chove e o céu por trás de mim já anuncia o fim da noite, recomeço do dia. Já me esqueci da cama, das mãos, da janela. Tudo isso morreu com o fim da noite. Eu, com o recomeço do dia, fui encontrado morto pelos meus cães, no quintal, debaixo do telhado que dá para a janela do quarto.

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