T0 airoso e mobilado Lisboa centro

Desembarquei numa paragem cheia de pessoas de calças de ganga em indiana fila. O sol atirou-se-me à testa, perlou-a de um suor pegajoso. Dei duas miradas em volta para tomar o norte e acabei por tomar por uma viela medieva a feder a mijo à minha mão esquerda. Tão entretido ia a evitar as bostas (de cão?) que atapetavam aquela parte da cidade que foi como ir a dormir numa viagem de autocarro: nem dei que já chegara. Salvo erro, era só dobrar a esquina defronte.
(- Deve ser isto)
Um montículo negro especado junto a uma portada de madeira que emoldurava outro montículo negro indicava o sítio, à laia de X no mapa dos piratas. À minha abordagem
- Boas tardes, venho visitar o tê-zero airoso e mobilado, eu liguei-lhe anteontem à hora de almoço, recorda-se concerteza
o primeiro montículo, que, ou muito me engano, ou faria puzzle na minha axila, pirou-se com um monossílabo indistinto que a da janela retribuiu sem desviar as lâminas dos olhos de mim. Não desolhou por uns segundos mais, até que, sem uma palavra, desapareceu na sombra de naftalina da casa. Podia jurar que, ao primeiro gesto da mulher, um casal de morcegos abalou num suspiro de pó. A figurinha, que doravante designarei de Passa, reapareceu numa portinhola verde que chiava melancolicamente das dobradiças de ferro, onde tive de passar de esguelha, tão larga era. Dava logo para aquilo que me pareceu ser uma escadaria de madeira que flutuava perdida na escuridão de todas as noites da eternidade. Ali, nem um gato via um palmo à frente dos olhos. Deixei-me estar, para poupar as canelas. Quando já começava a sentir as pernas de mil aranhas a percorrerem-me o cabelo e o pescoço, uma lâmpada espirrou uma luz indecisa lá dos altos. A Passa convidou-me a subir com a afamada cortesia lisboeta
- Demora muito ou faz serão? não tenho a sua vida
Na subida apercebi-me que crostas de estuque caíam como flocos de neve pelo desfiladeiro da escadaria.
(- Tá bonito)
Estaquei debaixo da soleira da porta, a qual parecia dever a sua solidez a duas notáveis teias-de-aranha estrategicamente instaladas no encontro das pranchas das aduelas. A Passa exibia-se agora surpreendentemente lesta. Abanicando as suas mãos de gelatina de um lado para o outro, afigurava-se-me um vendedor de jogos de cama e toalhões turcos de microfone de bochecha no alto de um reboque do tamanho de uma lata de sardinhas a urrar
- Isto é um palácio, meus amigos, um pa-lá-cio
Olhei em volta.
(- Sim senhora, já tive gavetas de cuecas e caixas de sapatos mais airosas que esta merda)
Mas o trapo ia lançado, parecia determinada a tomar-me como inquilino.
(- Na volta engraçou comigo)
- Note o jovem que até tem máquina de lavar loiça
- Que bom já viu? mas diga-me cá, onde cabe a cama?
A Passa não apreciou o meu cumprimento e cuspiu-me logo
- Então não está visto que dorme em cima da máquina da loiça? e já agora pode comer e cagar em cima dela também
Mas eu vinha em paz. Repliquei-lhe em tom apaziguador
- Isso que me diz recorda-me aquele caso do homem que cagava confecções, palavra, fazia da retrete um pronto-a-vestir, coisa notável
A velha abriu uma nesga das beiças para protestar, mas eu prossegui na declaração de tréguas
- Mas veja lá que a noiva quando soube só lhe deu para vomitar e isso andava a dar-lhe conta aos intestinos, de maneira que o casamento esteve por um fio, mas acabou por ver o lado prático do fenómeno e abriu umas modas às Picoas, ó freguês é só pedir, mas nunca revelaram o segredo, não ia a senhora mulher ao balcão explicar às clientes é só dizer que o meu marido caga-lhe isso em dois dias úteis, e pronto, só visto, um sucesso e pêras, tanto que ainda hoje lá os encontra, o homem a cagar, a mulher a vender
A Passa achou graça à estória e ajeitou os lábios secos num sorriso de gengivas ensanguentadas. Eu devolvi-lhe a gentileza e assim meio aparvalhados ali ficámos por um momento. Finalmente disse-lhe
- Agora, quatrocentos e cinquenta euros por esta gruta, ó minha senhora, mete-a no cu
Mesmo tomada de surpresa, a Passa, rata, não tardou a ripostar. Entrelaçando os dois braços, fez-me um manguito como mandam as regras e deu-me ordem de saída numa trovoada de perdigotos. Enquanto me pisgava escada abaixo fui-lhe soprando uns beijos da palma da mão.
Pena. A zona era gira.

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