Declaração de voto

Não acredito na "pedagogia pela catástrofe", nas "conexões imperativas entre a desgraça e entendimento" ou nas "energias didácticas e transformadoras da opinião que irradiam das tragédias" defendidas por Sloterdijk e citadas por Gonçalo M. Tavares no seu comentário póstumo à obra de Saramago ("Nos livros de Saramago, o apocalipse não é o fim, mas o primeiro dia."). E não acredito porque, em termos absolutos, não tenho esperança na Humanidade; porque penso que, derradeiramente, é a dimensão colectiva do Homem aquela que define e determina a sua acção e a sua impressão, por sobreposição à sua actuação individual, essa sim muito mais inspiradora.
Ao invés, alinho-me com a «não-inscrição» de José Gil - aliás dia após dia reforçada - ou pelo menos numa intermediação e condicionamento do potencial pedagógico das tragédias (para usar a mesma expressão do ensaísta) por parte de uma entidade exterior e anónima que, para facilitar a comunicação, muitas vezes tenho chamado de Ordem.
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(Que será como que uma moldura multidimensional onde tudo acontece, incluindo eu próprio, e donde o grosso dos estímulos e atrofios me chegam, e que, nessa interligação ininterrupta e ao mesmo tempo indefinível, deixa de ser exterior e anónima para passar a ser, inversamente, íntima. Estranhamente, mas íntima. Até porque não me posso furtar ao papel que, de um modo ou de outro, protagonizo nesse exterior-interior, nessa Ordem, que é tanto mais «eu» quanto mais eu a repudio ou censuro. Essa participação activa na realidade que percepciono e critico é precisamente aquilo que legitima essa mesma acusação. No fim de contas, tudo não passará de uma confissão.)
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De resto, a esperança na Humanidade está presente nas mais diversas obras, mesmo nas dos "autores da margem", como Vaneigem ou Calvo. Esta convicção, além de evidenciar, em última análise, que a chave-mestra dos grandes problemas do Homem se encontra exclusivamente nele mesmo, constitui-se fatalmente como a falha estrutural de toda a construção teórica da Solução. Em suma, o que vou tentando dizer é isto: não há nada a esperar do Homem tal como a Humanidade está organizada.

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