Do Homem & outras coisas mais

O Homem é o último reduto da Esperança em Si mesmo. Não fosse esta construção suster-se à custa duma estrutura moral que pretende que uma realidade espontânea (ou o que de mais próximo do ideal do termo existe) pode ser sujeita a qualquer tipo de condenação a posteriori, e teríamos aqui um bom prato de Conversa. Ah, isto para não dizer que a ideia corporiza um contra-senso esclarecedor: pois que a matéria-prima do desatino é tida como a indústria transformadora da solução. Mas vejamos: para quê essa Esperança? Eis o que somos, aqui nos temos, não há como não gostar. Até porque não é de orgulho que se trata. Não pode ser. Numa palavra, não passamos de burlões de nós mesmos. A consciência tranquila é um património necessariamente privado, do foro íntimo de cada qual. No domínio público só há espaço para o desespero, para a decepção e para a mais vanguardista hipocrisia. É o que lá se dá, em suma. Depois, há que ver que os homens que pensam e escrevem o Homem fazem-no olhando para trás, ou de esguelha, através das prateleiras categorizadas das bibliotecas e das barbas caducas dos Mestres, e, quiçá para se darem ares de intelectualidade, arrebanham desde logo todo um povo (ou mais do que um, no caso dos mais alarves) num par ou dois de definições-chave que desde logo servem para alinhavar a obra e o discurso. "Os portugueses..." (isto é só um exemplo) são isto e são aquilo. E logo uma notinha de rodapé a remeter para uma tabela comparativa ou um gráfico de barras. Tentam depois explicar o inexplicável (e conseguem-no, a mais das vezes): "em 1415..." foi isto, "em 1640..." aconteceu aquilo, e etc., e acto contínuo "isto determinou sobremaneira...." ou "este acontecimento teve um profundo impacte..."; enfim, toda a sorte de analogias a partir de um - unzinho - facto histórico (ui ui, a História) e toda a imensidão de vontades e acasos de um oceano de gente administrativamente amuralhado num nome - Portugal (isto é só um exemplo) - apresentado como uno. Vejamos, e.g., os gatos. Os gatos são sem dúvida animais intrigantes. Donos de um olhar profundíssimo, conseguem sem embargo ser da maior estupidez enquanto júniores. Eis portanto a diferença: ao atingirem a maturidade (coisa de dois anos, não mais) são a expressão acabada de uma existência duplamente sábia e pacata. São por assim dizer de uma superioridade preguiçosa. Já o Homem, esse, parece evoluir em sentido inverso, ou seja, da promessa para o arrependimento. O que se revela particularmente lamentável (em termos quantitativos) se considerarmos a longevidade média de um(a) indivíduo(a). Trata-se, no caso vertente, e à falta de um termo melhor, de Inocência. Está visto que, ao atingir aquilo que, no caso humano, se instituiu designar por "maturidade", o Homem a perde - a Inocência, bem entendido - e perde-a, note-se, a bem ou mal. Não a perdendo, digamos assim, naturalmente, perdê-la-á à força, por meio de uma pressão invisível e invencível da sociedade (conjunto de homens). Caso contrário, será, fatalmente, um estrangeiro, um exilado (ou visto como tal, o que vem dar ao mesmo). Quanto ao mais, sempre temos o caso do maio de sessenta e oito. Já por aí se escrevinhou que a publicação de uma crítica a uma determinada ordem recorrendo aos meios utilizados por essa mesma ordem é um erro que muito facilmente se comete. É, numa imagem, uma duna onde até os mais bem-intencionados resvalam perdidamente. Afinal de contas, o maio de 68 revelou-se (com o devido arranjo técnico) uma marca apreciável e um êxito de vendas do calibre de um Che Guevara ou de uma Coca-cola. Com a diferença que abriu as pernas ainda em vida (aliás curta). O "é proibido proibir", por ex., não foi apenas um slogan pobre (ainda que de forma enternecedora); foi também um sintoma de contágio, uma cicatriz de condicionamento, e um presságio de fracasso. De todo o modo, creio que a beleza da coisa terá residido justamente nesse sensibilíssimo ponto: a decepção prometida, a derrota prevista. Um pouco como o Amor, enfim. Só esse fracasso (negado enquanto houve chance, e, por muitos, muito tempo depois) deu finalmente sentido a toda a Paixão. Se o maio de 68 tivesse levado a sua avante (?), rapidamente se transformaria numa nova ordem a abater, mera substituta da antiga, ou como que sua descendente e herdeira. Destarte, quedou-se lindamente lá nos confins do Ideal e da imaginação, no hipotético "teria sido bom", donde, para seu bem, não convém que saia. E ainda vendeu umas t-shirts. E pariu um eurodeputado verde.

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